“Mas não se é educado ao morrer, não se diz com licença. Saímos porta afora sem avisar.”
Este é um trecho de uma crônica de Fabrício Carpinejar, que foi publicada na edição de março da Revista Bravo! Eu ainda não havia lido nada do famoso Carpinejar. Uma pena! Porque eu não lembro de ter lido nada tão verdadeiro, profundo e tocante quanto essas duas frases, juntas.
Nessa mesma edição da Revista Bravo! li uma reportagem que falava sobre a quebra de tabus - praticada pela revista Realidade, na década de 60 – e, logo depois, li a crônica de Carpinejar, já lá pelas últimas páginas da Bravo!. Assim, percebi, e decidi, que essa era a oportunidade certa para eu [tentar] quebrar alguns tabus que persistem em continuar na minha vida.
Uma vez, numa mesa de bar, conversávamos sobre suicídio e as tentativas frustradas recorrentes no mundo dos famosos e anônimos. Em meio à conversa, uma colega declarou, mais ou menos assim: “Gente, na boa, quem quer realmente se matar não fica com essa frescura de remédio, corte de pulso e tal, simplesmente se joga e pronto!”. Todos se calaram, se entreolharam. Eu virei pra ela e disse: “É, tens razão.”. Rapidamente ela percebeu a situação em que havia se colocado e se pôs a me pedir desculpas, muitas desculpas. Mas não era necessário, não mesmo. Ela tinha razão e eu jamais fiquei chateada por isso.
Como disse Carpinejar, não se pede licença ao morrer, saímos sem avisar – em boa parte das vezes. Interpretar literalmente essas frases e relembrar a constante existência delas na minha vida não é nada fácil, confesso. Talvez por doer tanto em mim eu fale tão pouco a respeito. (Na verdade, tem muita coisa que eu deveria falar mas não consigo. Mas isso é assunto pra outra história). Vivenciar situações trágicas, mortes trágicas, quando se tem apenas sete anos de idade – ou melhor, quando se tem qualquer idade! – é um trabalho diário de autocontrole que, no meu caso (e incluindo minha família, claro), já dura cerca de 15 anos.
No dia em que meu irmão morreu – no dia em que ele saiu porta afora, sem avisar e/ou pedir licença, e se jogou do parapeito do décimo andar do prédio onde moro até hoje – lembro tão claramente, e dolorosamente, de irmã tentando me distrair com um carrinho azul e segurando uma foto 3x4 do Ângelo – foto essa que carrego comigo até hoje. Na ocasião em que foi fotografado ele tinha 14 anos. A mesma idade com que decidiu não pertencer mais a esse mundo, em meados de 1996. Como eu era muito nova, tenho menos lembranças dele do que eu gostaria de ter. Então guardo essa foto, com o maior cuidado, pra que eu nunca me esqueça do rosto dele, já que da voz eu estou quase esquecendo.
Fazer com que crianças, tão novas quanto eu era, entendam a morte é complicado. Lembro que no dia da morte de meu irmão, muitas pessoas apareciam na minha casa com caras bem tristes e sem saber o que dizer/fazer. Chegavam perto de mim, me davam um beijo na testa e diziam: “Não fique assim. Pense que ele está em um lugar melhor”. O problema é que não estava triste pela morte dele em si, eu estava triste por todas as cenas pós-morte que eu assisti: todas as coisas do armário dele jogadas pelo chão, papai chorando copiosamente ao telefone e mamãe se debatendo na cama, tentando se soltar de umas oito mãos que a seguravam.
Eu não sabia que meu irmão havia morrido. Eu não sabia o que era morte. Na minha, até então ingênua, cabeça, meu irmão tinha fugido de casa – com uma trouxinha igual a do Chaves, levando cueca, biscoito e brinquedo. E quando as pessoas diziam que ele havia partido para um lugar melhor, eu imaginava que ele tivesse fugido para um parque de diversões, para um clube com piscina, para a casa do melhor amigo, para Mosqueiro... sei lá! Para lugares que crianças gostam de ir.
Meus pais não me deixaram ir ao enterro, mas “permitiram” que eu fosse ao velório. Hoje, eu penso que deveriam ter feito o contrário. Mas como cobrar alguma coisa de alguém que acabou de perder um filho? Enfim. O fato é que guardo até hoje a imagem do meu irmão deitado em um caixão, com flores ao redor, com algodão no nariz, na orelha e no canto da boca, com marcas roxas no corpo e muita gente chorando ao redor. Cheiro de naftalina pra mim é uma grande tortura! Era o cheiro do caixão. E toda vez que sinto esse mesmo cheiro, em qualquer lugar que seja, lembro desse dia e sinto que meu irmão está por perto.
Os dias pós-morte foram passando e eu continuava a não entender muito bem o que estava acontecendo. Durante uma semana teve novena na minha casa. Lembro muito pouco da missa de 7° dia, realizada na capela do colégio Gentil (onde a gente estudava). Mas lembro que foi linda. Chorei de saudade – afinal, há uma semana meu irmão não aparecia pra brincar comigo ou cuidar de mim – e de ver outros chorando. Acho que foi a partir desse dia que eu abandonei a ideia de que ele havia fugido e passei a acreditar que ele apenas estava escondido em algum armário lá de casa. Acho que foi por conta da imagem, do dia da morte dele, de ver todas as coisas jogadas pelo chão. Lembro que, muitas e muitas vezes, eu parava em frente a algum armário e esperava o Ângelo aparecer, e até mesmo dizer que tudo aquilo não passava de uma brincadeira de esconde-esconde.
Eu contava aos meus amigos da escola que meu irmão tinha morrido, mas sem entender o real significado daquilo que eu estava contando. Talvez tenha sido só a partir de 1998, quando o meu avô (meu querido avô!) faleceu, por causas naturais, que comecei a entender o que era a morte. Chorei tanto, tanto, nesse dia que hoje eu acredito que tanta lágrima era lágrima acumulada de dois anos. A ficha finalmente havia caído. Meu irmão estava morto por conta de um suicídio e meu avô por conta de um infarto. Era o fim! E eu chorava, chorava, chorava... até não poder mais. Chorava muitas vezes sem saber o porquê, e chorava ainda mais. Hoje eu já não derramo mais tantas lágrimas, mas por dentro...
Eu sempre lembro do meu avô, principalmente em situações engraçadas. Minha família gosta muito de contar as várias histórias dele – que são realmente hilárias. Do meu avô (Seu Wilson!) eu quase sempre tenho uma lembrança feliz. Talvez porque ele morreu mais ou menos no tempo certo, de forma mais ou menos certa, quando já tinha realizado muitos dos seus desejos, dos seus sonhos.
Já sobre o meu irmão... Um dia desse, não faz muito tempo, me dei conta de que, em 15 anos, não houve um dia sequer em que eu não tivesse lembrado dele. Na maior parte das vezes, isso acontece antes de eu dormir. E não importa a quantidade de lembranças felizes que eu tenha, todas, inevitavelmente, sempre serão seguidas das lembranças do dia 25 de agosto, dia da morte dele. Portanto, lembrar do meu irmão é sempre muito doloroso, apesar de me fazer bem e de exercitar a memória. Às vezes, lembrando dele, fico triste sem perceber. Dá uma saudade...! E não é, óbvio, igual à saudade que a gente sente quando o namorado está viajando ou quando alguém que gostamos muito vai morar em outra cidade ou outro país. É uma saudade tão profunda e tão cruel que não se consegue sequer descrever!
Certa vez ouvi minha mãe conversar ao telefone com uma amiga que havia acabado de perder o filho – um rapaz muito bom, inteligente, e que lutou a vida inteira pra sobreviver. Ao tentar confortar a amiga, lembro de minha mãe dizer uma frase tão tocante, e memorável, quanto às do Carpinejar: “A dor [da perda de um filho] nunca diminui. A gente apenas aprende a conviver com ela, a se acostumar com ela”. E desde então eu passei a ter um medo maior de morrer e até mesmo de ter um filho.
PS: Hesitei, várias vezes, em escrever e publicar um texto sobre esse assunto. Primeiro porque eu sabia que choraria ao digitar cada parágrafo (o que realmente aconteceu) e segundo porque sempre achei desnecessário compartilhar tais lembranças e sentimentos com outras pessoas. Mas, pensando melhor, externar tais coisas pode me fazer bem e pode servir de alguma utilidade para quem ler. Então...
Este é um trecho de uma crônica de Fabrício Carpinejar, que foi publicada na edição de março da Revista Bravo! Eu ainda não havia lido nada do famoso Carpinejar. Uma pena! Porque eu não lembro de ter lido nada tão verdadeiro, profundo e tocante quanto essas duas frases, juntas.
Nessa mesma edição da Revista Bravo! li uma reportagem que falava sobre a quebra de tabus - praticada pela revista Realidade, na década de 60 – e, logo depois, li a crônica de Carpinejar, já lá pelas últimas páginas da Bravo!. Assim, percebi, e decidi, que essa era a oportunidade certa para eu [tentar] quebrar alguns tabus que persistem em continuar na minha vida.
Uma vez, numa mesa de bar, conversávamos sobre suicídio e as tentativas frustradas recorrentes no mundo dos famosos e anônimos. Em meio à conversa, uma colega declarou, mais ou menos assim: “Gente, na boa, quem quer realmente se matar não fica com essa frescura de remédio, corte de pulso e tal, simplesmente se joga e pronto!”. Todos se calaram, se entreolharam. Eu virei pra ela e disse: “É, tens razão.”. Rapidamente ela percebeu a situação em que havia se colocado e se pôs a me pedir desculpas, muitas desculpas. Mas não era necessário, não mesmo. Ela tinha razão e eu jamais fiquei chateada por isso.
Como disse Carpinejar, não se pede licença ao morrer, saímos sem avisar – em boa parte das vezes. Interpretar literalmente essas frases e relembrar a constante existência delas na minha vida não é nada fácil, confesso. Talvez por doer tanto em mim eu fale tão pouco a respeito. (Na verdade, tem muita coisa que eu deveria falar mas não consigo. Mas isso é assunto pra outra história). Vivenciar situações trágicas, mortes trágicas, quando se tem apenas sete anos de idade – ou melhor, quando se tem qualquer idade! – é um trabalho diário de autocontrole que, no meu caso (e incluindo minha família, claro), já dura cerca de 15 anos.
No dia em que meu irmão morreu – no dia em que ele saiu porta afora, sem avisar e/ou pedir licença, e se jogou do parapeito do décimo andar do prédio onde moro até hoje – lembro tão claramente, e dolorosamente, de irmã tentando me distrair com um carrinho azul e segurando uma foto 3x4 do Ângelo – foto essa que carrego comigo até hoje. Na ocasião em que foi fotografado ele tinha 14 anos. A mesma idade com que decidiu não pertencer mais a esse mundo, em meados de 1996. Como eu era muito nova, tenho menos lembranças dele do que eu gostaria de ter. Então guardo essa foto, com o maior cuidado, pra que eu nunca me esqueça do rosto dele, já que da voz eu estou quase esquecendo.
Fazer com que crianças, tão novas quanto eu era, entendam a morte é complicado. Lembro que no dia da morte de meu irmão, muitas pessoas apareciam na minha casa com caras bem tristes e sem saber o que dizer/fazer. Chegavam perto de mim, me davam um beijo na testa e diziam: “Não fique assim. Pense que ele está em um lugar melhor”. O problema é que não estava triste pela morte dele em si, eu estava triste por todas as cenas pós-morte que eu assisti: todas as coisas do armário dele jogadas pelo chão, papai chorando copiosamente ao telefone e mamãe se debatendo na cama, tentando se soltar de umas oito mãos que a seguravam.
Eu não sabia que meu irmão havia morrido. Eu não sabia o que era morte. Na minha, até então ingênua, cabeça, meu irmão tinha fugido de casa – com uma trouxinha igual a do Chaves, levando cueca, biscoito e brinquedo. E quando as pessoas diziam que ele havia partido para um lugar melhor, eu imaginava que ele tivesse fugido para um parque de diversões, para um clube com piscina, para a casa do melhor amigo, para Mosqueiro... sei lá! Para lugares que crianças gostam de ir.
Meus pais não me deixaram ir ao enterro, mas “permitiram” que eu fosse ao velório. Hoje, eu penso que deveriam ter feito o contrário. Mas como cobrar alguma coisa de alguém que acabou de perder um filho? Enfim. O fato é que guardo até hoje a imagem do meu irmão deitado em um caixão, com flores ao redor, com algodão no nariz, na orelha e no canto da boca, com marcas roxas no corpo e muita gente chorando ao redor. Cheiro de naftalina pra mim é uma grande tortura! Era o cheiro do caixão. E toda vez que sinto esse mesmo cheiro, em qualquer lugar que seja, lembro desse dia e sinto que meu irmão está por perto.
Os dias pós-morte foram passando e eu continuava a não entender muito bem o que estava acontecendo. Durante uma semana teve novena na minha casa. Lembro muito pouco da missa de 7° dia, realizada na capela do colégio Gentil (onde a gente estudava). Mas lembro que foi linda. Chorei de saudade – afinal, há uma semana meu irmão não aparecia pra brincar comigo ou cuidar de mim – e de ver outros chorando. Acho que foi a partir desse dia que eu abandonei a ideia de que ele havia fugido e passei a acreditar que ele apenas estava escondido em algum armário lá de casa. Acho que foi por conta da imagem, do dia da morte dele, de ver todas as coisas jogadas pelo chão. Lembro que, muitas e muitas vezes, eu parava em frente a algum armário e esperava o Ângelo aparecer, e até mesmo dizer que tudo aquilo não passava de uma brincadeira de esconde-esconde.
Eu contava aos meus amigos da escola que meu irmão tinha morrido, mas sem entender o real significado daquilo que eu estava contando. Talvez tenha sido só a partir de 1998, quando o meu avô (meu querido avô!) faleceu, por causas naturais, que comecei a entender o que era a morte. Chorei tanto, tanto, nesse dia que hoje eu acredito que tanta lágrima era lágrima acumulada de dois anos. A ficha finalmente havia caído. Meu irmão estava morto por conta de um suicídio e meu avô por conta de um infarto. Era o fim! E eu chorava, chorava, chorava... até não poder mais. Chorava muitas vezes sem saber o porquê, e chorava ainda mais. Hoje eu já não derramo mais tantas lágrimas, mas por dentro...
Eu sempre lembro do meu avô, principalmente em situações engraçadas. Minha família gosta muito de contar as várias histórias dele – que são realmente hilárias. Do meu avô (Seu Wilson!) eu quase sempre tenho uma lembrança feliz. Talvez porque ele morreu mais ou menos no tempo certo, de forma mais ou menos certa, quando já tinha realizado muitos dos seus desejos, dos seus sonhos.
Já sobre o meu irmão... Um dia desse, não faz muito tempo, me dei conta de que, em 15 anos, não houve um dia sequer em que eu não tivesse lembrado dele. Na maior parte das vezes, isso acontece antes de eu dormir. E não importa a quantidade de lembranças felizes que eu tenha, todas, inevitavelmente, sempre serão seguidas das lembranças do dia 25 de agosto, dia da morte dele. Portanto, lembrar do meu irmão é sempre muito doloroso, apesar de me fazer bem e de exercitar a memória. Às vezes, lembrando dele, fico triste sem perceber. Dá uma saudade...! E não é, óbvio, igual à saudade que a gente sente quando o namorado está viajando ou quando alguém que gostamos muito vai morar em outra cidade ou outro país. É uma saudade tão profunda e tão cruel que não se consegue sequer descrever!
Certa vez ouvi minha mãe conversar ao telefone com uma amiga que havia acabado de perder o filho – um rapaz muito bom, inteligente, e que lutou a vida inteira pra sobreviver. Ao tentar confortar a amiga, lembro de minha mãe dizer uma frase tão tocante, e memorável, quanto às do Carpinejar: “A dor [da perda de um filho] nunca diminui. A gente apenas aprende a conviver com ela, a se acostumar com ela”. E desde então eu passei a ter um medo maior de morrer e até mesmo de ter um filho.
PS: Hesitei, várias vezes, em escrever e publicar um texto sobre esse assunto. Primeiro porque eu sabia que choraria ao digitar cada parágrafo (o que realmente aconteceu) e segundo porque sempre achei desnecessário compartilhar tais lembranças e sentimentos com outras pessoas. Mas, pensando melhor, externar tais coisas pode me fazer bem e pode servir de alguma utilidade para quem ler. Então...
Não tem um dia que eu não pense no meu irmão tbm! =)
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