Em
uma conversa sobre autismo, uma grande amiga minha, que hoje é psicóloga,
mostrou o trailer de um filme feito de massinha e praticamente sem cor. Achei
estranho, mas fiquei interessada pelo roteiro (baseado em fatos reais) e pelo
trailer – com uma trilha sonora fofinha. Minha amiga disse que o filme poderia
ajudar no trabalho e na formação acadêmica da minha irmã, estudante de
Psicologia. Depois de um tempo, quando tive mais paciência e disposição,
resolvi arriscar e loquei o filme (lá na Fox Vídeo) para assistir.
Na
locadora, o filme pode ser encontrado na prateleira de “comédia”. Com essa
classificação pensei: “vou até fazer pipoca, o filme parece ser divertido”. Mas
aí veio a surpresa que até hoje não sei dizer se foi boa ou ruim. A comédia
era, na verdade, um drama (tragicômico talvez?). Imaginem vocês: um drama feito
de massinha, todo fofo (apesar da quase ausência de cores), com jeitinho de
inocente e inofensivo.
Mary & Max (2009), escrito e dirigido por Adam Elliot é, provavelmente, um dos
melhores e mais surpreendentes filmes que já vi. É claro que o fato da história
ser real contribui bastante para essa minha conceituação. Mas não é só isso. A
história é bem contada, de forma leve (e até divertida – daí a justificativa de
ser “comédia”), tratando de assuntos tão delicados com uma linguagem acessível,
próxima da nossa realidade, do nosso cotidiano.
O
ENREDO
Vamos
então ao enredo. Mary é uma criança australiana de 8 anos, filha de uma
mãe alcoólatra e displicente. Portadora de um “nível mais leve” (se é que eu
posso chamar assim) de autismo, Mary não tem amigos, não tem com quem
conversar, com quem trocar experiências. Certo dia, vasculhando uma lista
telefônica, decide escolher aleatoriamente uma pessoa para mandar uma carta,
tentar uma amizade, uma forma de se comunicar. E o nome escolhido para uma
possível amizade é Max.
Max
é um nova-iorquino com mais de 40 anos que mora em apartamento quase sem
móveis, tendo como companhia um aquário onde vive apenas um peixe. Portador de
um “nível mais grave” de autismo, Max não tem família e também não tem amigos. É
obeso, judeu e virgem. Quando chega a carta de Mary – uma completa estranha que
mora do outro lado do mundo - reacende em Max a esperança de ter enfim um
amigo, alguém com quem ele possa conversar.
Mary,
como toda criança curiosa, vê em Max uma oportunidade de esclarecer dúvidas banais
e corriqueiras, dessas que as crianças costumam ter, mas nem sempre tem para
quem perguntar. Coisas como “de onde vêm os bebês?”, “o que é camisinha?”, “o
que é o amor?”, entre outras perguntas inocentes, típicas da idade dela. No
entanto, esses questionamentos acabam por despertar em Max lembranças, traumas,
perguntas nunca respondidas que voltam a perturbá-lo carta a carta. Max acaba
respondendo às dúvidas de Mary com a mesma inocência com que ela perguntou. Em
uma das cartas, Mary pede conselho a Max sobre como ela deve reagir quando os
colegas da escola a maltratarem. Max sofre então uma crise de autismo ao
relembrar de todas as vezes em que apanhou na escola, quando criança, por ser
autista, obeso e judeu. Pra mim, essa é uma das cenas mais marcantes do filme.
A
troca de cartas entre os dois dura anos, mais de uma década. Algumas delas são
acompanhadas de fotos, barras de chocolate, latas de leite condensado, bonecos
colecionáveis, entre outros anexos, conforme um vai conhecendo o outro, sabendo
o que gosta, o que não gosta e o que gostaria de conhecer. Sem nunca se
encontrarem, Mary e Max criam um laço de amizade que para nós pode parecer
bobo, sem muita importância, mas para eles é o único laço construído durante
anos de vida, o único meio de comunicação com o mundo. Passados alguns anos,
depois de casar e enfrentar uma separação, Mary usa o caso clínico do amigo Max
como objeto de pesquisa acadêmica que logo é transformada em livro. O livro,
que talvez seja uma maneira de Mary tentar entender a si mesma, acaba criando
uma série de situações que levam Mary a Nova York para finalmente encontrar Max.
Mas o resultado desse encontro, é claro, não vou contar. É um spoiler cruel
demais, não me autorizo.
Uma
das coisas que mais chama a atenção no filme são as cores (ou ausência delas). O
universo de Mary é todo retratado em tons de sépia, combinando com o ambiente
rural e interiorano do lugar onde ela mora, além de trazer uma serenidade e
inocência que fazem parte da personalidade da personagem. Já o universo de Max,
em uma das maiores cidades do mundo com todos os problemas que tanta
grandiosidade oferece, é todo em preto e branco, meio sem graça, sem
perspectivas e sem esperanças. Nada mais adequado para um homem com mais de 40
anos que nunca namorou, nunca teve amigos nem filhos nem dinheiro.
LEMBRANÇAS
Se
eu fosse professora de crianças, certamente usaria Mary & Max como didática com os meus alunos. Por trás de todo o
valor que pode haver em uma amizade, com todos os seus altos e baixos, o filme trabalha
a temática do autismo de uma forma tão delicada quanto à própria doença – se é
que eu posso chamar assim.
A
história dos dois me fez lembrar dos meus tempos de colégio. Na minha sala
estudava um menino que, na época, chamávamos de estranho/ pomba lesa/ doido, essas
coisas maldosas que as crianças fazem até hoje com os colegas. Ele, tal qual Max ou
Mary, não conseguia criar laços de amizade com ninguém da escola. Volta e meia,
sofria umas crises estranhas em que tapava os ouvidos, balançava o corpo pra
frente e pra trás e fazia ruídos com a boca. Nem preciso falar que isso era
motivo suficiente para que todos na sala ficassem rindo, ridicularizando o
menino. Com o tempo, e com a insistência dos professores e coordenadores, nós
fomos aprendendo a conviver com ele, buscando maior aproximação e diminuição do
bullying.
Anos
depois, quando eu já estava na faculdade, lembrei desse menino e fiquei
pensando o que teria acontecido com ele (pergunta que me faço até hoje).
Repassando na memória os acontecimentos em sala de aula, finalmente me dei
conta de que meu colega era autista. Mais tarde, percebi algo bem pior: de que
os pais e os professores nunca souberam como lidar com a situação. Nunca
disseram aos alunos por que o menino era assim, nunca nos explicaram o que era
autismo e por que precisávamos constituir uma amizade com o garoto. Não sei se
por resistência dos pais ou se por incompetência dos professores. Só sei que
isso com certeza prejudicou o menino e atrasou o amadurecimento dos alunos como
seres humanos.
Com
Mary & Max eu sinceramente espero
que esse tipo de situação, esse despreparo das escolas e até dos pais em lidar
com o autismo seja diminuído e diluído aos poucos.
Apesar de ter sido classificado pela crítica especializada como “comédia”, o filme me fez chorar (tá, tem alguns momentos que são engraçados, mas é aquele engraçado do tipo “rir pra não chorar”, sabe?), trouxe lembranças um tanto quanto amargas (além dessas das quais falei) e as boas também. Sem dúvida, é um daqueles filmes que a gente coloca no cantinho especial da prateleira cinéfila.
OBS: Quando fomos
devolver o filme na Fox Vídeo, reclamamos ao vendedor sobre a classificação de
gênero que foi dada a Mary & Max. O vendedor concordou com a gente e disse
que o filme não era mesmo para estar na prateleira de comédia, mas a Fox
precisa seguir a classificação dada por críticos especializados. Sendo assim,
nada poderia fazer a respeito.