segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Só no cafezinho... Ô Ô

O Tico e o Teco da minha mente aproveitaram o Halloween e se fantasiaram de @Duda_rangel e @pedrox ao mesmo tempo. Aí deu nisso!


Paródia de “Só no Sapatinho” inspirada na minha atual situação de vida:


Ela chega acabada e sonolenta, todo mundo logo escuta seu ronquinho pelo ar

Ela dorme de um jeitinho diferente, abre a boca e fecha os olhos, vai caindo devagar

Essa gata tem um sono bem profundo, pode até cair o mundo que ela não vai acordar

O coleguinha até trás um cafezinho, ela acorda um pouquinho e depois sai pra trabalhar


Só no cafezinho... Ô Ô

Só no cafezinho... Ô Ô

Só no cafezinho... Ô Ô

sábado, 29 de outubro de 2011

O Palhaço, de Selton Mello: mas é pra rir ou pra chorar?

Li uma semana antes da estreia do filme, em algum site que não me lembro qual, que Selton Mello escreveu o roteiro de O Palhaço em meio a uma crise pessoal, de não mais saber se ele ainda estava trilhando o caminho certo, se o cinema, a profissão, ainda poderiam acrescentar algo de novo na vida dele, sem saber se ele ainda queria fazer o que faz. Coincidência ou não, o personagem principal do filme - Benjamin, o palhaço Pangaré, é alguém que não sabe se ainda quer fazer o que faz tão bem: fazer o público rir. Benjamin é um palhaço que, fora dos palcos, está sempre cheio de tristeza e melancolia nos olhos e no sorriso. Fora dos palcos, a sua graça está na vida sem graça que leva.

Inicialmente, Rodrigo Santoro deveria ser o ator que assumiria o papel principal, segundo a vontade do próprio Selton (roteirista e diretor do filme). Mas Santoro, envolvido com outros projetos, precisou recusar a proposta. Selton então fez o que deveria ter feito desde o início: decidiu que iria interpretar o personagem que ele mesmo criou. Sim, foi com certeza a mellhor escolha que fez. Porque Selton dá vida ao Benjamin de forma tão natural que em certos momentos eu já não sabia se aquele olhar (que me partia o coração) era de Selton ou de Benjamin. E é óbvio que, em se tratando de Selton Mello, isso não significa que ele só saiba interpretar personagens parecidos com ele mesmo. De jeito nenhum! E nem preciso citar aqui os vários trabalhos em que o ator provou seu talento, que, como eu já disse uma vez, ultrapassa o limite do bom senso. Mas significa, sim, que ele conhecia muito bem o personagem que criou e interpretou. Conhecia tanto que fez com que o público não soubesse, em certos momentos, o que era ficção e o que era realidade.
Benjamin é um tanto quanto ignorante. Mas, por mais que ele diga que os problemas dele concentram-se em comprar um ventilador e/ou encontrar um sutiã velho pra amiga, ele inconscientemente sabe que os problemas vão muito além dessas coisas tão pequenas. A vida itinerante do circo, a falta de um lugar fixo, a falta de estudos, o calor das cidades pelas quais precisa passar, não poder conhecer outras pessoas além das que trabalham no circo... Tudo isso constrói o personagem e o público consegue sentir e se comover com o peso da vida que Benjamin carrega nas costas.
‘O Palhaço’, que é recheado de cenas lindas do interior do Brasil, concentra-se na psicologia dos personagens e explora muitíssimo bem o olhar de alguns deles. De alguns, porque nem todos têm tanto assim a dizer através dos olhos. A menina (filha de um casal de artistas do circo e que é a cara da Radija, de O Clone) carrega no olhar toda a inocência, a ingenuidade e o encatamento típicos de uma criança. Fascinada pela vida circense, o filme mostra o crescimento e o envolvimento dela junto ao circo e aos integrantes do circo. É ela quem observa e aprende tudo sem dizer nada. É uma lindinha!
E o que falar da presença de Paulo José no filme? Nas últimas entrevistas e matérias que li sobre ele, soube o quanto tem sido difícil atuar estando cada vez pior do Mal de Parkinson. Mas, ao mesmo tempo, trabalhar tem sido a terapia do ator. E enquanto ele puder fazer o que faz tão bem, o público, obviamente, será o principal beneficiado. Uma das estratégias usadas pelo ator para controlar as tremedeiras causadas pela doença, tem sido a de sempre movimentar os braços, segurar em objetos e, no cinema, a de trabalhar em plano americano para que a câmera não flagre os frenéticos movimento das mãos e dos braços. Tudo isso tem funcionado muito bem, e comovido bastante também.
Selton Mello e Paulo José nunca haviam trabalhado juntos. ‘O Palhaço’ foi a primeria oportunidade que os dois puderam ter. Uma grande ironia da vida. Ou melhor, da arte. No filme, Paulo José dá vida ao palhaço Puro Sangue, pai de Benjamin, o palhaço Pangaré. Os dois contracenam no palco do circo, em cenas hilárias e muito bem feitas e interpretadas. Selton e Paulo José transparecem uma sintonia pouco vista no Cinema. E, de novo, o olhar torna-se essencial: a cumplicidade e parceria entre os dois, enquanto pai e filho, enquanto Selton Mello e Paulo José chega a arrepiar os que conseguem perceber.
Definitivamente, Selton Mello nasceu pra fazer cinema (de todos os jeitos possíveis). E espero que, com o sucesso de ‘O Palhaço’, ele perceba que ainda pode, sim, se superar, se desafiar, se surpreender consigo mesmo. A gente agradece, e muito!


*Se for mesmo escolhido para disputar o Oscar 2013 de Melhor Filme Estrangeiro, "O Palhaço" terá a difícil missão de enfrentar o francês "Intocáveis", mas confesso estar otimista. De uma forma geral (que é o que conta nessa categoria), O Palhaço tem vantagens sobre Intocáveis, como a trilha sonora, a fotografia, o roteiro... Mas disputar com o eterno favoritismo francês não vai ser tarefa fácil. De qualquer forma, qualquer um dos dois merece, e muito, a estatueta. Os dois são sensacionais!

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

"Amazônia: uma história de perdas e danos, um futuro a (re) construir", de Violeta Refkalefsky

Segue abaixo o estudo realizado pela socióloga paraense Violeta Refkalefsky, que foi publicado no site da Scielo (Scientific Eletronic Library Online) e que me foi apresentado pela primeira vez pelo professor Agenor Sarraf. O trabalho é de 2002 e aborda a história social e econômica da Amazônia, com as perdas e os danos sofridos desde a chegada do primeiro europeu à região, Vicente Pinzon. O estudo esclarece questões essenciais sobre o "desenvolvimento" da Amazônia. Questões que podem ser facilmente relacionadas, por exemplo, à Hidrelétrica de Belo Monte, à ideia de separatismo do Estado do Pará, aos impactos causados (e visíveis até hoje) pelos grandes projetos desenvolvidos aqui na região. Enfim, aos que se interessam pelo assunto, vale a pena conferir este trabalho:

A história da Amazônia tem sido uma trajetória de perdas e danos

A HISTÓRIA da região tem sido, da chegada dos primeiros europeus à Amazônia até os dias atuais, uma trajetória de perdas e danos. E nela, a Amazônia tem sido, e isso paradoxalmente, vítima daquilo que ela tem de mais especial — sua magia, sua exuberância e sua riqueza.

Não se trata de uma queixa, mas de uma constatação simples: a Amazônia foi sempre mais rentável e, por isso, mais útil economicamente à Metrópole no passado e hoje à Federação, do que elas o tem sido para a região. A Amazônia foi no passado "um lugar com um bom estoque de índios" para servirem de escravos, no dizer dos cronistas da época; uma fonte de lucros no período das "drogas do sertão", enriquecendo a Metrópole; ou ainda a maior produtora e exportadora de borracha, tornando-se uma das regiões mais rentáveis do mundo, numa certa fase. Na Segunda Guerra Mundial, fez um monumental esforço para produzir borracha para as tropas e equipamentos dos Aliados. Mas é mais recentemente que ela tem sido mais explorada: seja como fonte de ouro, como em Serra Pelada, que serviu para pagar parte da dívida nacional, deixando na região apenas as belas reproduções das fotografias que percorreram o mundo, mostrando a condição subumana do trabalho dos homens no garimpo; seja como geradora de energia elétrica para exportar para outras regiões do Brasil e para os grandes projetos, que a consomem a preços subsidiados, enquanto o morador da região paga pela mesma energia um preço bem mais elevado; seja como última fronteira econômica para a qual milhões de brasileiros têm acorrido nas últimas décadas, com vistas a fugirem da persistente crise econômica do país, buscando na Amazônia um destino melhor (o que, infelizmente, poucos encontram).

E, se poucos migrantes têm conseguido ascender socialmente no novo lugar de destino (a Amazônia), em compensação, devido à histórica política de abandono das classes pobres pelo Estado brasileiro, a região vem se convertendo desde as últimas décadas num espaço onde se registram o conflito no campo, a miséria urbana e o desperdício de recursos naturais. Embora seja, talvez, a maior província mineral de todo o planeta e produza ferro e outros minérios, ajudando o país a manter sua balança comercial, pouco se tem beneficiado das exportações em geral, já que a maioria dos impostos não fica retida na região.

Se a Amazônia tem gerado riqueza, a riqueza não se vê nem se fixa nela. É verdade que tem havido um crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) da Amazônia nas últimas décadas. No caso do Pará, por exemplo, onde houve um crescimento econômico expressivo, no ano de 1975 o PIB era US$ 2,408 bilhões e em 1987 havia ascendido a US$ 5,332 bilhões, o que significa um fantástico aumento de 121% no período. No entanto, como o crescimento da população foi igualmente grande (face à migração), a renda per capita que era de US$ 946,83 em 1975 passou para US$ 959,01 em 1987, com um crescimento relativo de apenas 1,29% no período. Em contrapartida, os recursos naturais da Amazônia vêm sendo engajados nesse esforço de exploração da região pela União com uma força extraordinária e com grande desperdício, já que é justamente para explorá-los a custo baixo, ou próximo de zero (como no caso da floresta), que os novos capitais vêm se dirigindo nas últimas décadas para a região.

Ao longo de sua história, a Amazônia tem gerado sempre mais recursos para fora (Metrópole e Federação) do que tem recebido como retorno; tem sido, permanentemente, um lugar de exploração, abuso e extração de riquezas em favor de outras regiões e outros povos. Mesmo nos últimos trinta anos, quando grandes investimentos foram feitos em infra-estrutura, estes visaram possibilitar a exploração de riquezas em favor da Federação.

Uma história construída entre o mito e a violência

O primeiro europeu a pisar as terras amazônicas, o espanhol Vicente Pinzon (em janeiro de 1500), percorreu a foz do Amazonas, conheceu a ilha de Marajó e surpreendeu-se em ver que se tratava de uma das regiões mais intensamente povoadas do mundo então conhecido. Ficou perplexo vendo a pororoca e maravilhado com as águas doces do mais extenso e mais volumoso rio do mundo. Foi bem acolhido pelos índios da região. Mas, apesar de fantástica, sua viagem marca o primeiro choque cultural e o primeiro ato de violência contra os povos da Amazônia: Pinzon aprisiona índios e os leva consigo para vender como escravos na Europa.

A viagem de Orellana (em 1549) instaura o momento fundador dos primeiros mitos, como o das Amazonas — índias guerreiras, bravas habitantes de uma aldeia sem homens. Outros viajantes, aventureiros e exploradores que procuravam riquezas espalharam mundo afora mitos e fantasias. De todos, o mito mais persistente parece ter sido sempre o da superabundância e da resistência da natureza da região: florestas com árvores altíssimas que penetravam nas nuvens, frutos e flores de cores e sabores indescritíveis, rios largos a se perderem no horizonte (povoados de monstros engolidores de navios nas noites escuras), animais estranhos e abundantes por todo o chão; pássaros cobrindo o céu e colorindo-o em nuvens de penas e plumas de todas as cores.

A viagem de Orellana inaugura, também, o ciclo dos mitos sobre a Amazônia. Refiro-me aos mitos construídossobre a região pelo olhar e a alma do estrangeiro, a partir de uma visão da terra e da gente da Amazônia fundada no imaginário do homem de fora da região. Desde então, a Amazônia tem sido definida, interpretada, explorada, amada e mal-amada a partir do olhar, da expectativa e da vontade do outro. As primeiras viagens dos estrangeiros iniciam, também, um ciclo dos preconceitos que, desde então, nunca mais abandonaram essa visão, fortemente distorcida, sobre o homem e sobre a região, eivada de preconceitos que ficaram colados nela desde os primeiros momentos.

Os primeiros conquistadores e colonizadores não se conformaram em ver aquela terra, que lhes parecia ser o paraíso terrestre, ocupada por povos que julgavam bárbaros, primitivos, rudes, preguiçosos e, possivelmente desprovidos de uma alma! Dos primeiros séculos da colonização aos governantes, políticos e planejadores dos dias atuais, a história da Amazônia tem sido o penoso registro de um enorme esforço para modificar aquela realidade original. Trata-se de uma tentativa de domesticar o homem e a natureza da região, moldando-os à visão, à expectativa de exploração do homem de fora (estrangeiros no passado, brasileiros e estrangeiros no presente).

A história dos homens na Amazônia tem sido construída a partir de dois eixos norteadores, mas conflitantes: de um lado, a visão paradisíaca criada pela magia dos mitos da região e sobre a região; de outro, a violência cotidiana gestada pela permanente exploração da natureza e desencadeada pelos preconceitos em relação a ambos — homem e natureza.

Ao longo de quatro séculos (1) perdeu-se, gradativa mas persistentemente, a identidade original do homem e os referenciais da vida anterior, face aos sucessivos e constantes choques culturais. Hoje, o homem da Amazônia procura reconstruir, sem cessar, um nova identidade e uma nova forma de vida que lhe possibilitem harmonizar uma nova cultura com a conservação da natureza, os benefícios e o usufruto do progresso técnico e científico do mundo moderno.

Preconceitos, mitos e equívocos do final do século

Ao longo do século XX, outros mitos (e também, equívocos e preconceitos) juntaram-se àqueles dos primeiros séculos. A Amazônia foi considerada como a terra da superabundância e o celeiro do mundo. Estrangeiros e brasileiros imaginaram que uma floresta tão exuberante devia estar sustentada por um solo igualmente fértil. Assim, a Amazônia poderia ser, no futuro, o celeiro do mundo - um lugar bíblico ao qual, no período de escassez, como ocorreu no passado, todos poderiam recorrer para dele sobreviver. Posteriormente, fizeram-nos acreditar que a Amazônia seria o pulmão do mundo.

A análise dos planos, programas e projetos federais dos últimos 35 anos permite enumerar uma série desses equívocos e distorções (2). Destacarei aqui aqueles que estão mais evidentes e presentes nas políticas públicas para a Amazônia.

Equívocos sobre a natureza da Amazônia

Gostaria aqui de citar pelo menos três grandes equívocos que estão presentes e bastante destacados nos planos e projetos dos últimos 35 anos:

  • A Amazônia seria um macro-sistema homogêneo de floresta, rios e igarapés em toda a sua extensão;
  • A natureza em geral, e a floresta em especial, seria a expressão do primitivismo e do atraso regionais; os planos governamentais estimulam, sempre, sua substituição por atividades ditas "racionais", produtivas;
  • A natureza amazônica seria resistente, superabundante, auto-recuperável e inesgotável.

Evidentemente, nenhum desses pressupostos tem fundamento. Somente no que concerne à biodiversidade dos seus sistemas florestais, a Amazônia conta, grosso modo, com dois grandes tipos de ecossistemas: as florestas de áreas inundáveis (com várzeas, igapós e mangais) e as florestas de terra firme (com florestas altas e densas, florestas baixas, florestas de encostas; campos naturais, savanas, cerrados e lavrados).

O modelo econômico posto em ação na região tem ignorado e menosprezado a diversidade dos inúmeros ecossistemas amazônicos. Na prática, a Amazônia brasileira tem sido considerada nos planos governamentais como um sistema natural homogêneo em seus quase cinco milhões de km2.

A maior riqueza da Amazônia — sua biodiversidade — tem sido, na prática, ignorada, questionada e combatida sistemática e implacavelmente pelas políticas públicas. Essas políticas estabeleceram uma oposição (que é, na verdade, um falso dilema) entre desenvolvimento e conservação ambiental. O desenvolvimento sustentável, como uma forma de desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer as necessidades das futuras gerações, não integra as políticas públicas como condição essencial. Quando aparece, está confinado e limitado a alguns programas específicos dos setores e órgãos ambientais.

Face a esses e a outros pressupostos equivocados sobre a natureza, as políticas voltadas para o planejamento regional, que ao longo dos últimos 35 anos estiveram a cargo dos organismos nacionais e regionais, criaram instrumentos e estímulos diversos à exploração da natureza aplicados, sem cuidado ou distinção alguma, a quaisquer dos ecossistemas existentes. Atividades econômicas tão diversas como a pecuária, a exploração madeireira, a mineração, a garimpagem e outras, que apresentam diferentes impactos sobre a natureza, vêm sendo desenvolvidas indiferentemente sobre áreas de florestas densas, nascentes e margens de rios, regiões de manguezais, nas planícies em encostas, em solos frágeis ou nos raros solos bem estruturados. E a maior parte dessas atividades tem produzido enorme e injustificável desperdício de recursos naturais.

Ao invés de considerar a natureza como um dom, uma aliada do desenvolvimento, as políticas públicas têm adotado uma estranha lógica de combate e agressão à natureza, estimulando nas últimas décadas a transformação da mais vasta, rica e exuberante floresta tropical do mundo em áridas pastagens, em áreas de plantação de grãos, etc., sem levar em conta que a Amazônia dispõe de extensos campos naturais e várzeas, que poderiam ser aproveitados economicamente, sem danos ambientais.

Nas últimas décadas, enormes massas vegetais, que incluem madeiras nobres, vêm sendo queimadas impiedosamente. De 1500 a 1970, ou seja, em 470 anos, apenas 2% de toda a floresta amazônica havia sido destruído; em apenas 30 anos (1970 a 2000), segundo o INPE, 14% foi devastado. Trata-se de um desastre sem precedentes contra o maior patrimônio natural do planeta Terra, contra a economia e a sobrevivência dos habitantes naturais — caboclos, ribeirinhos, índios e outros. E, pode-se mesmo dizer, contra o futuro da região e das novas gerações que precisarão dela para viver! A natureza não tem sido considerada como parceira e aliada para estabelecer um real desenvolvimento da região. Ao contrário disso, a floresta aparece nos planos e programas federais para a região nas últimas décadas ora como um obstáculo a ser vencido, ora como simples objeto a ser explorado, ora como um almoxarifado inesgotável de riquezas — que, portanto, não se precisa ser reposto.

O modelo tem se apoiado, também, na crença (equivocada) de que os ecossistemas amazônicos são ricos e, portanto, resistentes aos impactos ambientais e naturalmente auto-regeneráveis. Os planos, programas e projetos econômicos, desde o fim dos anos 1960 aos dias atuais, em sua maioria, pressupõem uma inesgotabilidade e uma alta resistência da natureza amazônica. Governantes, políticos, técnicos e empresários em geral não compreenderam ainda ou simplesmente não deram importância ao fato de que os ecossistemas amazônicos são frágeis e que sobrevivem à custa de um equilíbrio muito delicado dos três elementos-chave, que se articulam simultaneamente: chuva-mata-solo.

Seus ecossistemas são ricos mas, paradoxalmente, são também extremamente frágeis. Os solos amazônicos — diferentemente dos solos de outras regiões do mundo onde as florestas foram devastadas sem provocar grandes danos ambientais — são solos rasos, mal estruturados, pobres, em sua maioria; e sobrevivem à custa dos nutrientes que recebem da floresta.

Na Amazônia, não se pode desmatar sem replantar, por várias razões combinadas, todas elas igualmente importantes. Em primeiro lugar, a copa das árvores abranda o impacto das fortes chuvas que caem durante quase seis meses por ano na região; os solos descobertos não resistem às intensas e constantes chuvas, que os lavam e os deixam surpreendentemente pobres. Segundo, porque os solos vivem da biomassa oriunda das árvores e que apodrece sobre eles, formando uma importante camada de nutrientes; por sua vez, os solos são alimentados, também, pelos nutrientes que escorrem pelos galhos e troncos junto com as águas. Finalmente, porque o regime de chuvas amazônico depende da evaporação da floresta, sem o que o ecossistema se desequilibra, desorganiza-se, empobrece rapidamente e entra em crise (3).

Assim, a Amazônia constitui-se num conjunto de ecossistemas muito delicados, formados pelas unidades chuva-floresta-solo-floresta-chuva, etc., no qual cada um dos três é indispensável e insubstituível. Diferentemente de outros solos no mundo, em que as florestas se sustentam graças à fertilidade desses solos, nos espaços amazônicos a situação difere radicalmente: com poucas exceções, é a rica floresta que sustenta um solo que é, quase sempre pobre. Retirando-se a cobertura florestal, perde-se não apenas a floresta, mas o solo e a fauna nele existentes.

Com muita freqüência, a natureza amazônica, e em especial sua floresta, tem sido considerada como expressão do primitivismo e do atraso regionais. Ou ainda, como simples material, biomassa barata, apropriável a custo zero por investidores, que não se deram ao trabalho nem arcaram com os custos de plantá-la. Planos, programas e projetos (e especialmente os Planos de Desenvolvimento da Amazônia — PDAs — formulados pelo Governo Federal para a região: PDA-I, II, III da Nova República e outros que os seguiram), sugerem claramente que a mata nativa deve ser substituída por empreendimentos mais "modernos", mais "racionais", mais "econômicos".

Preconceitos quanto à cultura do homem da região

Dos vários preconceitos relativos à cultura do homem da Amazônia, pelo menos dois deles estão claramente expressos e são constantes nos planos e nas políticas públicas federais para a região:

  • Índios e caboclos viveriam em terras excessivamente vastas e as ocupariam em atividades pouco rentáveis para o Estado e de forma incompatível com a economia e a sociedade modernas;
  • Índios, negros (quilombolas) e caboclos têm sido considerados nos planos e nos projetos econômicos criados para a região como sendo portadores de uma cultura pobre, primitiva, tribal e, portanto, inferior. Assim, eles nada teriam a aportar de positivo ao processo de desenvolvimento. Com isso, esses grupos étnicos e sociais não têm sido priorizados nas políticas públicas para a região.

Como conseqüência deste e de outros pressupostos e preconceitos do gênero, índios, negros e caboclos se tornaram "invisíveis" no conjunto das políticas públicas. Não foram no passado, e continuam não sendo, ainda hoje, tratados como atores sociais importantes no processo das mudanças em curso.

Por fim, os índios e caboclos, depois de perdidas a identidade e o modo de vida tradicional, acabam eles próprios a vender suas terras e suas matas, reforçando o preconceito já estabelecido contra eles. Com frequência, tendo sido desestruturada sua forma de vida e trabalho anteriores, à falta de outras alternativas, engajam-se em atividades predatórias (como a exploração madeireira e a garimpagem) e passam, eles também, a defendê-las, já que constituem-se agora no seu novo meio e modo de vida. Para completar, trata-se de um modelo que não aproveita o saber acumulado pelo homem da região no uso dos recursos florestais; pelo contrário, ao invés de apoiá-lo e de oferecer a ele oportunidades de uma modernização democrática e verdadeira, simplesmente o alija do processo de mudança.

Pressupostos, preconceitos e mitos relativos ao capital, ao trabalho e às atividades produtivas em geral

Na esfera do trabalho e das diversas atividades produtivas, os preconceitos e equívocos parecem transbordar dos mais diversos documentos legais, planos e projetos, tão abundantes são. No entanto, gostaria de me limitar àqueles que parecem exercer maior influência sobre os destinos da região e de sua gente. Destaco aqui os seguintes:

1º — Os governos têm entendido (o que é também um equívoco) que o desenvolvimento é tarefa e virtude exclusiva do capital e, principalmente, do grande capital. Mais ainda, têm entendido que somente o grande capital teria o impulso capaz de desenvolver a região, dada sua grande extensão. O capital e somente ele, o que exclui o homem da região, representaria riqueza. Atraindo-se grandes capitais para a região, como uma conseqüência "natural" ter-se-ia a riqueza econômica, da qual, a longo prazo, todos se beneficiariam. Em nenhuma instância o modelo levou em conta que, sem uma política de desconcentração de renda, o grande capital somente aumentaria as desigualdades sociais e a formação de bolsões de pobreza em contraste com os grandes empreendimentos.

2º — Os abusos, as exorbitâncias e o arbítrio desse novo capital que se instala na região são incontáveis: a criação e a recriação do trabalho escravo; a expulsão e a morte de posseiros, índios, trabalhadores rurais em geral; a grilagem de terras; as queimadas; a poluição de rios, lagos; e muitos outros. Contudo, sob a nova ótica economicista, esses problemas devem ser entendidos como fenômenos característicos de uma fase inicial do desenvolvimento amazônico, cuja tendência seria a de desaparecerem, a longo prazo, quando o processo de desenvolvimento tiver atingido sua fase avançada (sic)! No entanto, é visível que a superação dessa "fase" não vem ocorrendo.

3º — Quanto à política de trabalho e emprego, para os governos vale mais a geração de um emprego num dos novos empreendimentos recém-criados (mineração, extração de madeiras, etc.), pois, apesar dos danos ambientais graves que provocam, geram impostos e, assim, são preferíveis às atividades não-geradoras de impostos como as atividades tradicionais dos caboclos da região. Trata-se de uma estranha contabilidade pública na qual os governos, ao prestarem contas à sociedade dos investimentos feitos visando o desenvolvimento regional, apontam apenas os ganhos, sem registrar e descontar as perdas econômicas e sociais: uma contabilidade que não leva em conta a formação de grandes massas de desempregados, constituída pelos habitantes naturais que ficam sem condições de permanecer em suas terras, vilas e povoados depois de expulsos delas para que sejam implantados os grandes empreendimentos — que, supostamente, promoverão o desenvolvimento da região. Uma contabilidade que não considera como problema a população migrante que, atraída pelos grandes empreendimentos, fica desempregada, formando as periferias miseráveis das cidades amazônicas. Trata-se de uma estranha lógica que não contabiliza os custos dos subsídios, vantagens e facilidades financeiras concedidas pelo setor público, que sacrifica o restante da sociedade ao canalizar esses recursos para fins privados; que não computa o desperdício dos recursos naturais implicados no processo de atração de novos capitais para a região, nem os custos de uma infra-estrutura que, com freqüência, serve diretamente e apenas aos empreendimentos de grandes grupos econômicos e não à população em geral.

4ºO extrativismo vegetal tem sido considerado primitivo, antieconômico e, por isso mesmo, pouco merecedor de apoio, modernização e aperfeiçoamento. Assim, as políticas públicas têm entendido que deve ser substituída a mata nativa por atividades econômicas consideradas mais "modernas". Não se tem promovido uma política efetiva visando enriquecer a floresta, adensando-a com espécies rentáveis, substituindo as espécies de baixo valor comercial por outras de elevado valor no mercado; não se cogitou de definir claramente a forma de extração, conservação e aproveitamento da madeira, ou de fiscalizar rigidamente a exploração madeireira, punindo sistematicamente os infratores, para desestimular os abusos e as reincidências; e também não se tem levado em conta, seriamente, que a Amazônia constitui-se no maior banco genético do mundo e no maior reservatório de espécies florestais — o que possibilitaria o desenvolvimento e a produção de medicamentos os mais variados, inseticidas orgânicos, cosméticos, perfumes, novos alimentos, novas frutas e essências, enfim, produtos industrializados os mais diversos e não apenas produtos semi-elaborados, como tem sido a maioria dos produtos gerados pelos novos investimentos (e.g., a madeira em tábuas e toras, e o minério em lingote). Para aproveitar economicamente a floresta dessa forma, há necessidade de investimentos continuados em pesquisa e na produção. Mas, lamentavelmente, não se estabeleceu até hoje um programa nacional consistente, duradouro e eficiente para esse fim, embora a Amazônia seja, sabidamente por todos, o maior banco genético do mundo. Pelo contrário, os recursos destinados à fiscalização e à pesquisa vêm diminuindo gradativamente, enquanto cresce o contrabando de produtos florestais para o exterior, tal como ocorreu com a borracha no passado.

5º — Nos planos e projetos governamentais, a riquíssima biodiversidade da natureza amazônica — ou, mais propriamente, sua mega-biodiversidade — aparece como um elemento negativo. Para a maior parte dos empresários, seria preferível se a natureza amazônica tivesse poucas espécies (como o cat fish, o mogno, o pau d'arco e outras poucas espécies já conhecidas no mercado internacional). Numerosos tipos de madeiras, com características as mais diversas; peixes de água doce e salgada, com variados sabores, tamanho e aparência; uma enorme quantidade de essências vegetais — tudo isso, tão variado, segundo os empresários, dificulta a comercialização, porque o mercado internacional conhece apenas algumas poucas espécies.

Com freqüência, a enorme biodiversidade da natureza amazônica é concebida como um obstáculo do ponto de vista econômico. Isso porque a moderna sociedade industrial opera a partir de uma produção em escala que não se coadunaria com a fantástica biodiversidade da natureza da Amazônia. Assim, estabeleceu-se um danoso e equivocado mito da incompatibilidade entre biodiversidade e desenvolvimento. Daí porque as políticas públicas têm visado sempre quebrar a "barreira" da biodiversidade e trabalhar com homogeneidade na produção e produção de escala, tal como exige um mercado globalizado.

A que nos levará esse modelo?

O modelo econômico concebido há mais de trinta anos e ainda em curso na Amazônia padece de males inconciliáveis com a vida social, cultural e com a natureza da região.

Do ponto de vista da economia, os governos têm esperado que os investimentos para os quais contribuem sob a forma de facilidades, subsídios, incentivos e infra-estruturas de apoio venham a compensar, largamente, no longo prazo, os empréstimos contraídos para esse fim. Ora, o preço dos produtos primários ou dos produtos semi-elaborados, que se têm constituído na base das atividades econômicas estimuladas pelo modelo econômico, tem caído sistematicamente no mercado mundial.

Trata-se de uma forma de inserção de países subdesenvolvidos no mercado internacional em que os primeiros garantem seu lugar no mercado global à custa de um alto endividamento. Somente um item — a energia subsidiada — já significa uma enorme transferência de renda para os países centrais. De um lado, permanece a dependência aos conglomerados internacionais, posto que estes são os maiores compradores. De outro, as empresas internacionais consorciadas ao capital nacional controlam os preços no mercado interno. Ao final do processo, se há vantagens, elas são muito reduzidas, e isso tende a perdurar enquanto a Amazônia produzir semi-elaborados para o mercado externo.

A expectativa de melhoria nos preços desse tipo de produtos pelos governos chega a ser algo curioso e surpreendente, já que, desde os anos 60, a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) havia desenvolvido teorias demonstrando uma tendência histórica de queda dos preços de produtos semi-elaborados. Na mesma época, divulgou amplamente a tese de que somente a produção de produtos industrializados poderia agregar valor e lucro. Torna-se, portanto, difícil compreender por que, décadas depois, políticos e técnicos de nível nacional e regional, e dirigentes do Banco Mundial e de bancos brasileiros continuam a insistir no modelo de produção de bens semi-elaborados na região. Resta perguntar: a quem beneficia essa política, realmente?

É verdade que alguns governos estaduais (o do Pará, em especial) têm se esforçado em completar as cadeias produtivas e exportar produtos acabados. Contudo, essas iniciativas não têm força suficiente para redirecionar os grandes empreendimentos, já inseridos na economia global sob a forma de produtores de semi-elaborados. Além do que, são experiências isoladas, não alterando os objetivos e políticas federais para a região, que se estruturaram e caminham em direções opostas.

O atual modelo não levará ao desenvolvimento, porque os novos empreendimentos estão constituídos à base deenclaves de produção de semi-elaborados para exportação. Eles não se integram à economia da região e não produzem efeitos em cadeia, isto é, não induzem à instalação de novos empreendimentos decorrentes dos primeiros, porque visam, simplesmente, a exportação de bens num estágio primário ou de semi-elaborados. Se persistir por mais tempo ainda, o atual modelo apenas aumentará as desigualdades sociais, aprofundará os desequilíbrios regionais e levará à destruição enormes estoques de recursos naturais que poderiam servir de real impulso ao desenvolvimento regional.

Assim, as políticas públicas em curso na Amazônia apresentam vários problemas. Mas o mais fundamental é que, ao conceber povo e natureza da região como primitivos, tribais e atrasados, elas submetem o homem da Amazônia em geral a um conflitivo processo econômico que não respeita a cultura e o homem da região. Ao contrário disso, desenraíza o homem, empurrando-o como marginalizado para as periferias das cidades. Na Amazônia, o modelo econômico, além de ser gerador de enormes conflitos sociais, entra em choque com as populações naturais da região ao destruir sua forma de vida, seu ambiente natural e sua identidade cultural. O modelo procura repetir experiências históricas que deram certo noutros países, noutros tempos, noutros contextos culturais e naturais, mas que não são adequadas à nossa região.

Considerações finais

Ao aproximar-me do final deste texto, gostaria de fazer uma série de considerações.

A primeira consideração é a de que, como conseqüência de séculos de exploração e abusos, restou hoje uma estranha sensação de sermos estrangeiros: a sensação de vivermos num lugar desconhecido para nós, lugar onde o outro, o de fora, continua a nos apontar o tipo de cultura desejável para nós, aquilo que devemos valorizar, que coisas devemos explorar, a que sonhos devemos aspirar e o que devemos esperar como futuro. É essa pesada história de esmagamento da identidade cultural dos habitantes da região que nos faz sentir, hoje, como estrangeiros vivendo em nossa própria terra.

A segunda consideração diz respeito à real situação da Amazônia brasileira, despojada ela dos falsos mitos que envolvem sua imagem. No início de um novo século, a Amazônia vive uma situação sem precedentes: a informação que circula no mundo pôs a nu os danos ambientais ao maior patrimônio natural do planeta Terra, sem que um novo modelo substitutivo tenha sido estruturado. Mais do que nunca, o governo brasileiro e a Amazônia sofrem pressões internacionais, sem terem respostas e propostas substitutivas e consistentes a oferecer e sem meios concretos de combater a biopirataria ao maior banco de espécies vivas do planeta. É do amplo conhecimento do governo brasileiro que empresas internacionais levam espécies vegetais conhecidas e utilizadas amplamente pelas populações tradicionais (índios e caboclos), desenvolvem com elas medicamentos já conhecidos na região para doenças várias, patenteiam os produtos e os colocam no mercado internacional como mercadorias.

Apesar disso, pouco tem sido efetivado porque a longa crise de quase vinte anos na economia brasileira levou o governo federal a priorizar a contabilidade nacional, em detrimento da organização da sociedade e do apoio à estrutura produtiva das regiões brasileiras.

Diante do quadro, as reações da sociedade têm sido tímidas. Isso porque, ao longo de uma história autoritária e excludente como a da sociedade brasileira, em que o Estado procurou tomar, quase sempre, a liderança na condução dos processos históricos e sociais, a sociedade civil acabou se tornando refém do Estado. Salvo poucos momentos, a sociedade tem sido, quase sempre, submissa e pouco crítica. E assim, a região entra no terceiro milênio sem uma identidade cultural própria e sem um projeto de desenvolvimento compatível com a sua riqueza natural, com sua gente e com sua variedade cultural.

A terceira consideração diz respeito à necessidade e à urgência em colocar em prática um novo modelo, não apenas econômico, mas que busque um real desenvolvimento para a região amazônica, que não se contente em corrigir os efeitos perversos que caracterizam o atual, mas que comporte também e, ao menos, os seguintes princípios humanísticos ou condições fundamentais:

  1. Respeitar as populações locais e sua cultura, incorporando-as como elementos importantes nas transformações em curso;
  2. Desenvolver uma economia fundada nas noções de ecodesenvolvimento e sustentabilidade da natureza, de modo a preservá-la para as gerações futuras;
  3. Promover a mudança da base produtiva regional (hoje apoiada na exportação de produtos semi-elaborados num extremo e em atividades tradicionais de baixa produtividade noutro), verticalizando a produção — isto é, completando as cadeias produtivas por meio do setor industrial e complementando-as até se chegar a um produto final beneficiado e gerador de riqueza;
  4. Intensificar, através da pesquisa, o estudo do aproveitamento de espécies florestais e animais da Amazônia, reforçando as equipes de pesquisa e os laboratórios de universidades e institutos da região, especialmente nas áreas de biotecnologia, integrando-os com equipes e laboratórios dos centros mais desenvolvidos do país. Assim se poderá desenvolver um modelo econômico que propicie um real aproveitamento do patrimônio florestal em favor da sociedade brasileira. A pesquisa beneficiará a economia, já que ela permite aumentar a produção de espécies atualmente com baixa rentabilidade, encurtar o ciclo de cultivos de longa duração, adensar e enriquecer a floresta com as espécies mais demandadas pelo mercado, etc.;
  5. Disseminar, através de políticas tecnicamente bem orientadas e financeiramente viáveis, viveiros de espécies florestais. Além disso, desenvolver bancos de células de espécies com risco de extinção e o criatório de espécies animais naturais da região — sempre respeitando uma certa biodiversidade, já que, como se tem constatado historicamente, os ecossistemas amazônicos não toleram a homogeneidade que o mercado quer exigir deles. Assim, estaríamos apontando uma nova via econômica com um amplo leque de possibilidades e real aproveitamento dos recursos em favor da sociedade brasileira;
  6. Desenvolver oportunidades de geração de emprego e renda na própria região, para que a Amazônia seja não apenas um lugar de abundância natural, mas também um lugar de justiça e de bem-estar social;
  7. Ser democrático na distribuição da renda, possibilitando à população de baixa renda a participação nos frutos do progresso que, um dia, possam advir para a região.

A quarta consideração concerne à Amazônia como sujeito de sua própria história.

Somente passando a ser o sujeito de sua própria história, e não o objeto de uma história definida e escrita pelo estranho à região, é que o homem da Amazônia poderá reencontrar ou recriar sua identidade perdida, usufruir de uma verdadeira liberdade político-cultural e assim traçar seu próprio destino, para viver como um ser moderno, integrado à natureza e à sua própria cultura, construindo uma história da Amazônia também, ou principalmente, para sua gente.

Se o balanço de quatro séculos não é positivo, não se pode dizer que não existam possibilidades de mudança no futuro. Como mencionou Euclides da Cunha, "A Amazônia é a última página do Gênesis a ser escrita". Neste início de século, resta-nos escrever, e urgentemente, a página anunciada e tão esperada por Euclides da Cunha, apontando as possibilidades e vias para um futuro digno do novo século. O ciclo dos últimos quatrocentos anos pode ter sido um tempo longo, mas talvez necessário e suficiente, para uma tomada de consciência e para a construção de um projeto de vida autenticamente amazônico, compatível com a gente, o rio, a mata, os verdadeiros mitos da terra e com a modernidade de um novo século.

Notas

1 Belém, a primeira povoação fundada na Amazônia pelos europeus, data de 1616.

2 E os planos estaduais, com poucas exceções, em poucos momentos se distanciaram dos objetivos e métodos das propostas federais para a região.

3 Estudos científicos indicam que a retirada das árvores mudará o regime de chuvas da região, de vez que quase 50% das chuvas amazônicas resultam da evaporação da floresta.

Violeta Refkalefsky Loureiro é mestre em Sociologia pela Unicamp, doutora em Sociologia pelo Institut des Hautes Études de l'Amérique Latine (Paris) e professora da Universidade Federal do Pará.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O Ciclo Sem Fim de O Rei Leão

Durante a madrugada que antecedeu a estreia, tive uma crise de insônia, com a minha memória reproduzindo flashs das cenas mais memoráveis do clássico. Fui acometida de uma enorme dor de cabeça que durou até dia o seguinte, até momentos antes da transmissão dos trailers. O motivo? Muitos! Ansiedade, adrenalina, euforia, emoção, nostalgia... Tudo junto e misturado, e eu não podia controlar.

A sessão das 15h20 – a segunda do dia de estreia - estava praticamente vazia. Eu fui com mais cinco outras pessoas da minha família. Além de nós, só havia mais dois casais e uma mocinha para ocupar aquela imensa sala 6, do Cinépolis, que exibia os filmes em 3D. Ou seja, ficamos ainda mais à vontade para cantar, chorar, rir, sempre que necessário, até não conseguir mais. A realização do sonho estava, enfim, perfeita.

Quando o sol surgiu ao horizonte do reino de Mufasa, ao som da introdução de Circle of Life, segurei firme a mão do meu namorado, apertei os olhos de emoção e um sorriso involuntário e congelado surgiu no meu rosto, parecendo que ficaria ali até os créditos surgirem ao final do filme. E ficou. Em 1994, quando Rei Leão estreou no cinema, eu tinha apenas cinco anos de idade e meus pais não costumavam me levar ao cinema. Eu mal sabia o que era isso. Não lembro quando e como foi a primeira vez que vi Rei Leão. Só sei dizer que foi em fita VHS, na casa de alguma coleguinha minha de escola (Ou foi na casa da minha prima? Ah, não sei). O que importa é que, aos 22 anos, no dia 26 de agosto de 2011 (data que gravei há meses na minha memória), eu pude viver a experiência de assistir em uma imensa tela de cinema ao maior clássico da Disney. E foi lindo, muito lindo!

O bom de assistir a clássicos infantis quando já estamos crescidos é que podemos rir mais e melhor das piadas explícitas e implícitas. Podemos entender também melhor as críticas feitas e o cinismo dos personagens. O Scar, por exemplo, pareceu-me bem menos assustador que na infância. Pude rir bem mais que sentir medo. O Timão (ah, o Timão!) dispensa comentários. Acho que a melhor parte de toda a sessão foi poder ouvir a gargalhada do meu sobrinho de sete anos, ecoando por toda a sala, após a cena em que o Timão dança “Ula” ao lado do Pumba, na frente das hienas. Mesmo com toda a tecnologia dos novos filmes de desenho (como os feitos em parceria com a Pixar), O Rei Leão continua a encantar as novas gerações, dezessete anos depois de seu primeiro lançamento. Um mérito para poucos, bem poucos!

Mas o momento mais emocionante do filme, aquele que foi capaz de arrepiar a espinha e arrancar uma quantidade maior de lágrimas dos meus olhos, foi a cena em que Simba torna-se, enfim, o rei, subindo a passos largos pela pedra do reino, debaixo de chuva forte e ao som daquela trilha incrivelmente boa que é sempre usada em cenas tristes ou sombrias do filme. É óbvio que chorei pela milésima vez durante a cena da morte de Mufasa, que, durante a minha infância, era a cena mais emocionante de todas. Mas, desta vez, a cena da retomada do reino por Simba superou minhas expectativas e ocupou o posto de mais emocionante. Engraçado como o tempo, a idade e a vivência são capazes de mudar coisas, que antes pareciam já estabelecidas por lei, e torná-las ainda melhores.

Enfim, aos verdadeiros fãs do clássico digo que a experiência é mais que válida, é essencial. O “3D” é o de menos. Aliás, a conversão é bem ruim, nem dá pra perceber que o filme está em três dimensões. Mas, pra mim, sinceramente, o fato de poder reviver as aventuras e desventuras de Simba e sua trupe em uma tela gigante de cinema, elimina qualquer importância que o “3D” pudesse ter. Clássicos são clássicos, e não precisam de novas tecnologias para ser apreciados, para nos emocionar.

E para os que ainda não foram assistir - ou estão em dúvida se querem ou não gastar esses reais - segue o link que serve de estímulo.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Análise da trilha sonora de Super Mario World

Postado no twitter pelo perfil da Revista Repraesentatio (@repraesentatio), o vídeo abaixo é uma viajante análise da trilha sonora daquele que foi o principal game da infância de todos nós: Super Mario World. O trabalho de análise foi feito por estudantes de Cinema da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Em certo momento do vídeo, os autores analisam a trilha sonora a partir de uma teoria alemã, denominada de leitmotiv, que significa, genericamente: uma ideia ou pequena figura musical coerente que aparece associada a algo extra musical (um objecto, uma personagem, um estado mental, um lugar, ou qualquer outro ingrediente de uma obra dramática)”. No caso do vídeo, a teoria é aplicada ao personagem Yoshi. E essa explicação do termo é só mesmo para que ninguém fique perdido e possa curtir esse trabalho – que mais parece ser feito por estudantes paraenses que muito frequentaram a beira do Rio do Guamá, se é que me entendem.

Percebam que, após essa análise, Super Mario World nunca mais será o mesmo Super Mario World. Yoshi nunca mais será o mesmo Yoshi. Pra mim, foi um tanto quanto impactante, mas vale muito conhecer essa visão científica de algo que representa tanto pra gente.




terça-feira, 3 de maio de 2011

"Os piores músicos da década", por Rafael Fernandes

Muitos podem até discordar da opinião de Rafael Fernandes, mas é inegável o bom humor e a ironia no texto dele, publicado no site do Digestivo Cultural e reproduzido aqui no blog. Compartilho, praticamente, do mesmo ponto de vista dele, principalmente no que diz respeito ao “Latino”, “Qualquer artista de axé” e “(Qualquer ritmo aqui) universitário”. Talvez por isso eu tenha achado o texto, que é do ano passado mas ainda bastante atual, tão engraçado. Segue:

"Chamar de músicos os dignísismos abaixo é uma ofensa aos músicos de verdade. Mas não posso me furtar de homenagear alguns daqueles que deturparam o valor da música ― intencionalmente ou não ― durante a última década.

Mallu Magalhães
Festa de família. O tio chama todo mundo para ver sua filha tocando a música que acabara de aprender. Com quatro acordes bem treinadinhos ela se esforça. É até simpático, mas o pessoal aplaude por educação. As tias avós adoram, claro. Os mais bêbados dizem que ela é maravilhosa. É mais ou menos esse o papel de Mallu Magalhães na música brasileira. Como começou cedo, pode até virar alguma coisa interessante. Mas não agora. Por enquanto, é café com leite.

Black Eyed Peas
Se eles alegarem que são uma piada as coisas começarão a fazer sentido. Mas pela aparência e pompa, não é o caso. Será que eles, realmente, se levam a sério? Como bem escreveu o The Guardian sobre "My Humps", em seu artigo "As pessoas que arruinaram a década": "É uma piada? É sério? Ah, é apenas uma m...". A "música" do grupo é baseada nos mais surrados acordes (hein?) e melodias, com estrutura e métrica repetitivas para que o esforço de compreensão seja mínimo. Coisas que tornam "Parabéns a você" e "Cai cai balão" pérolas do arrojo musical. A gororoba é temperada com insinuações sexuais, como manda o manual do pop e do hip hop dos anos 2000. E muita pose, claro. Numa festa, pode até fazer algum sentido. Fora dela? Ressaca.

Latino
Esse campeão conseguiu ser parte da Escória Musical Brasileira (EMB) por duas décadas seguidas! Sempre apostando na pose bobalhão-pseudogalã-amigãodagalera, com tiradas tão criativas quanto as da Praça é Nossa. E buscando instigar o ridículo das pessoas. Taí: diferente do Black Eyed Peas, Latino abraçou o bizarro e faz dele sua marca registrada. Além disso, provou conhecer muito bem o nível de seu público alvo. É inegável que é competente em sua proposta. Não que isso seja um elogio.

Cantoras de samba
Elas foram surgindo aos montes pelos bares e pequenas casas de show no Brasil. Meninas lindas, de saias rodadas e mãos para cima cantando "lalalaiá". Mas fraquinhas na música, tadinhas. Faltava preparo, suingue, relevância e, por que não, samba. Eram aplaudidas efusivamente, afinal, no mínimo estavam resgatando o "samba de raiz" ― que anda sendo exaltado como arte simplesmente por continuar existindo. Talvez eu, realmente, não seja bom sujeito. Mas se me acusarem de ruim da cabeça, posso alegar que é efeito das vozes irritantes dessas pseudo-cantoras de neo-samba.

(Qualquer ritmo aqui) universitário
Forró universitário, pagode universitário, sertanejo universitário, entre outros. A fórmula é simples: pegue um ritmo já desgastado e adicione a palavra "universitário" para dar um ar de jovialidade. Use clichês da música pop, refrões pegajosos e uma pitada do ritmo citado para tentar enganar. Exemplo: coloque uma sanfona se quiser parecer forró e um chapéu de cowboy se quiser parecer sertanejo. Nas letras, fale de amor e baladas ― não importa qual o estilo. Embora existam artistas que realmente gostam do que fazem, a maioria é, como sempre, de "espertos" querendo se pendurar no bonde do sucesso passageiro. Aguardem que em 2011 lanço o próximo ritmo a estourar nas paradas: o fado universitário.

Roberto Justus
Justus é um daqueles caras que, por ter sucesso profissional, dinheiro, poder e influência, acham que pode tudo. Daí ter lançado um disco. Sabem o pior? Ele levou a sério e achou ótimo. Você está demitido da música, Justus. Mas não fique triste. Você ainda é milionário, casado com a Ticiane e o melhor: tem um topete impecável. E fica a dica: por que não criar um duo vocal com o Eike Batista?

White Stripes
Pense que você é um guitarrista bem, mas bem ruinzinho (pode imaginar Jack White sem perdas). Como se destacar musicalmente? Fácil! Dispense o baixista e chame uma baterista muito pior do que você. Voilá! Junte com um visual meio cool, meio loser e boatos sobre sua relação com a moça e a receita de sucesso está pronta. A partir disso, qualquer besteira cola. Como dizer que a sujeira do som é "estética" e que tocar um instrumento de plástico é "genialidade". O duo deveria chamar o Roberto Justus para uma jam. Se você ainda não consegue entender o quanto o White Stripes é enganação, pense em Gerald Thomas.

Qualquer artista de axé
Aqui, temos vários representantes da EMB. Na pré-história do gênero, "Fricote" foi um clássico; Araketu, um sucesso; Netinho (se lembram dele?) foi ídolo; Daniela Mercury e Margareth Menezes, duas das primeiras musas do gênero. O É o Tchan nos deu bons exemplos de sutileza e bom gosto ao falar de sexo, bem antes de Britney Spears nos apresentar seu repertório de danças exóticas. Aí vieram as ivetes e cláudias, versões 2000 e turbinadas de danielas e margareths. Hoje, graças à evolução do mercado, temos o privilégio de ter todos esses sub-gêneros fazendo sucesso ao mesmo tempo! Com músicas muito bem pensadas, verdadeiras revoluções estéticas. E versos que fariam Fernando Pessoa ruborizar de inveja. Vamos a alguns:

― "Pirou! Minha cabeça e o coração / Feito bola de sabão / Me desmancho por você" (como não se emocionar?)

― "Poeira! Poeira! Poeira! Levantou poeira!" (sacaram?)

― "Chi-cle-te! Oba, oba! Chi-cle-te! Oba, oba! Chiclete, chiclete quero chiclete" (declame algumas vezes com voz alta e empostada para notar a força literária)

Cansei de ser sexy
Uma bobagem maquiada com hype e aprovada por gringos sem noção. Destaque-se aqui que a autoestima de muitos "críticos" nacionais ainda é baixa. Um dos argumentos com os quais tentavam qualificar a banda e torná-la um "sucesso" era de que estavam fazendo "muitos shows no exterior". Lixo internacionalizado é mais chique. Num certo sentido, valeu como troco: os gringos mandam tanta porcaria para cá, que fiquem com o CSS. Afinal, a melhor (e única) contribuição musical do grupo foi o Também Sou Hype."

segunda-feira, 2 de maio de 2011

"Minhas raízes são aéreas"

Postada no Facebook pela minha querida amiga Rayza Sarmento, a entrevista, feita pela jornalista Eliana Brum, do site da Revista Época, e que reproduzo, na íntegra, a seguir, é o tipo de entrevista para parar e pensar em quantas vezes já ocupamos o nosso tempo ajudando ao próximo, em quantas vezes já ocupamos a nossa vida para verdadeiramente pensar no outro.

Ao terminar de ler a entrevista, a sensação foi bem parecida com a que senti ao assistir ao filme A Corrente do Bem, com Haley Joel-Osmet. Uma sensação de vazio, de que falta fazer muita coisa pelo outro; uma vontade de mudar o mundo, mesmo sabendo que não podemos. Mas, como a psicóloga da entrevista diz, não precisamos fazer parte do “Médicos Sem Fronteiras” nem sair em missões tão difíceis e perigosas como ela saiu para ajudar ao próximo, e também precisamos ter consciência de que o mundo não podemos mudar, mas a vida de alguém que precisa de ajuda é possível transformar, melhorar.

Ao ler a entrevista, relembrei do quanto sinto vontade de trabalhar em ONGs, em projetos com comunidades do interior do Estado; de toda a aflição e incômodo que sinto quando me deparo com a pobreza propriamente dita, com crianças e adultos perdidos pelas ruas da cidade, com histórias de violência contra mulheres e crianças. E, ao relembrar e refletir, percebi que, até hoje, não fiz nada ou fiz bem pouco de tudo o que eu gostaria de fazer pelo bem do próximo. Talvez por medo de sair da minha zona de conforto e ter que enfrentar uma realidade em que a ideia de felicidade é algo utópico, inalcançável. E isso incomoda, não tem jeito!

A psicóloga Debora Noal traz relatos chocantes, capazes de causar arrepios na pele e uma sensação de compartilhamento da dor alheia. Um dos trechos que mais me emocionou, é um em que ela conta a história de Marie – uma mulher africana que foi estuprada por dezenas de homens e perdeu cinco filhos por conta do ataque de rebeldes. Ao ser perguntada pela psicóloga quando foi a última vez que Marie havia sido feliz, a africana respondeu: “Foi quando eu dancei.”.

A entrevista, de Eliana Brum, é longa, mas capaz de prender a atenção do início ao fim pela densidade de conteúdo, por mostrar detalhes de um mundo que nós não conhecemos ou não costumamos ver, muito menos vivenciar.

Confira:

"No dia 16 de abril, a gaúcha Debora Noal botou nas costas uma mochila que nunca passa dos 10 quilos. Dentro dela, uma lanterna de cabeça, como as que os mineiros usam, adaptadores de todos os tipos para computador, um gel para lavar as mãos, lenços umedecidos para o banho, um kit de colher, garfo e faca, um canivete, duas camisetas da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), duas calças jeans, um lenço cor-de-rosa para usar na cabeça em regiões muçulmanas, uma jaqueta térmica, um par de havaianas e outro de tênis, um laptop e um dicionário de português/francês/inglês. Levou ainda uma velha boneca da Magali, personagem do criador Maurício de Sousa, que troca de cara (feliz, triste, zangada, etc), para ajudá-la no atendimento a crianças nos lugares mais remotos e perigosos do mundo. Aos 30 anos, a psicóloga Debora partiu para sua décima missão na MSF. Depois de uma preparação de alguns dias em Genebra, hoje ela está no Quirguistão.

Em 2010 houve um conflito étnico entre uzbeques e quirguizes no país da Ásia Central, ex-integrante da antiga União Soviética. Muitos morreram e muitos foram presos. Debora passará de quatro a seis meses trabalhando nas prisões do “Quirgui”, como ela diz. Além de duas missões no Brasil, desde 2008 ela atua em países que a maioria de nós não sabe pronunciar o nome nem onde fica – ou apenas conhece pelo noticiário internacional. Começou pelo Haiti (três vezes, incluindo a República Dominicana), Guiné-Conacri, República Democrática do Congo (duas vezes), e recém voltara de um campo de refugiados do conflito na Líbia quando foi recrutada para o Quirguistão. Sem saber que seria despachada para um país frio, tinha acabado de raspar a cabeça para mudar de estilo.

Dias antes de sua partida, entrevistei Debora por três horas em seu pequeno apartamento em Aracaju, capital de Sergipe, cidade tranquila e praiana que ela escolheu para voltar depois de cada partida. É um apartamento despojado e muito colorido, povoado por lagartixas e girafas artesanais que ganha de presente. Perguntei a ela a razão de tantas cores. E Debora me explicou que as cores são a forma encontrada por ela para representar a variedade de cheiros que seu contato com um mundo diverso de humanidades lhe proporciona – um universo olfativo impossível de definir em palavras. Era desse mundo muito mais rico – que Debora alcança e nós não – que eu queria saber.

Nascida e criada na gaúcha Santa Maria, Debora cursou Psicologia em Santa Cruz do Sul porque buscava uma faculdade comunitária. Depois, trabalhou no Fórum Social Mundial de 2005 e, quando o evento terminou, tentou pegar uma carona para Manaus. Não conseguiu. Acabou em Recife, onde instalou CAPs (Centro de Atenção Psicossocial) em duas cidades do interior pernambucano. Saiu de lá para fazer residência em Saúde da Família em Sobral, no Ceará, mas concluiu que, sem praia, não suportaria o calor de mais de 40 graus. Acabou em Aracaju, onde fez Gestão de Saúde Pública e Saúde Coletiva. Tornou-se funcionária da secretaria estadual de Saúde e percorreu 28 municípios do Baixo São Francisco para compreender as necessidades da população e organizar o atendimento. Até hoje não tem plano de saúde privado e só reserva elogios para a cobertura do SUS na capital sergipana.

Neste ponto da história, a MSF entrou na vida de Debora e o mundo virou – o que era longe ficou perto. Como em filmes de suspense, ela recebe ligações do tipo: “Debora, temos uma missão para você”. Mas, ao contrário do cinema, em que são espiões equipados com armas de última geração que recebem esse tipo de chamada, Debora parte em missões humanitárias. E arrisca a própria vida armada apenas de conhecimento e da ideia de que a humanidade inteira é sua família.

Debora nos apresenta uma realidade que, não por acaso, pouco chega até nós. Depois de ler sua entrevista, pode parecer difícil acreditar. Mas raras vezes conheci alguém tão leve, transparente e feliz. Os olhos de Debora brilham enquanto conta sua experiência. Nos momentos de maior brutalidade se turvam – e depois voltam a brilhar. Ela não perde nenhuma oportunidade de rir e sua voz é sempre suave. E, quando abraça as pessoas, abraça. Dá vontade de se tornar amiga dela pelo resto da vida. Deve ser por isso que a legião de amigos de Aracaju a espera no aeroporto com champanha e balões quando ela chega estropiada de mais uma missão.

É isso. Debora é com certeza uma das pessoas mais vivas que conheci. E esta é uma entrevista ao mesmo tempo chocante e inspiradora. Dois adjetivos que só alguém com as qualidades de Debora, capaz de arrancar esperança nos cenários mais brutais, poderia acrescentar a um mesmo substantivo. Por isso, foi também uma entrevista muito difícil de cortar. Depois de bastante sofrimento, consegui deixá-la em um terço da original. E guardar o restante para outro momento. Vale cada linha. E meu sonho é que todos possam lê-la e ser movidos pela vontade de compartilhá-la com os amigos e também com desconhecidos.

A foto abaixo foi escolhida por Debora e feita em Porto Príncipe, no Haiti, em 2009. A criança em seu colo se chama Estelle. Sua família queimou suas duas mãos e seus dois pés numa chapa quente, causando queimaduras tão graves que a menina correu o risco de sofrer a amputação dos membros. Durante todo o tratamento, Estelle só aceitou o toque de uma pessoa: Debora.

O que Debora diz é vital. Espero que, ao ler a entrevista a seguir, cada leitor possa alcançar Debora e incluir uma porção maior de mundo dentro de si.

Como você foi parar nos Médicos Sem Fronteiras?
Debora Noal
– Vige! É uma longa história.

A gente tem tempo...
Debora –
Um dia um amigo me disse: “Ó, Débora, acho que você tem todo o perfil para trabalhar nos Médicos Sem Fronteiras. Você nunca pensou nisso?” Eu nunca tinha escutado sobre os Médicos Sem Fronteiras na minha vida. Não sabia nem o que era isso. Acho que era janeiro ou fevereiro de 2008. Aí eu falei... “Nossa, Médico Sem Fronteiras? Não sei...”. Ele disse: “Dá uma olhada no site...”. Mas a minha vida era bem conturbada nessa época e eu nem olhei.

Como era sua vida nesse momento?
Debora -
Eu tinha um consultório com dez pacientes, que atendia à noite, fazia mestrado em Saúde Coletiva, tinha um emprego no Estado que eu adorava e morava numa cobertura de frente para o mar. Só eu e minha gata Filomena. Mas esse meu amigo ficou martelando. E eu acabei me inscrevendo. Dois meses depois eles abriram uma prova de seleção. Eu não sei se você já chegou a dar uma olhada no site, mas tem de fazer um monte de testes. Depois de você mandar seu currículo, você tem de ir fazer os testes e as entrevistas pessoalmente. Tem teste prático, técnico, de equipe, de gestão, uma entrevista em português e depois uma entrevista na língua que você escolher, que pode ser inglês ou francês.

E que língua você escolheu?
Debora –
O francês. Eu passei em tudo, mas eles me falaram: “Olha, você tem de melhorar o seu francês. Tem que ter francês fluente pra ir”.

Como era o seu francês nesse tempo?
Debora -
Era uma porcaria... muito ruim. Eu tinha um namorado que era francês, um parisiense. E a gente conversava muito. Mas era meu único contato com a língua. Se eu namorasse um inglês provavelmente teria escolhido o inglês e teria sido mais tranquilo. Mas eu voltei e estudei muito francês, sozinha. Eu fazia supervisão nos 28 municípios do Estado e ia escutando um CD com as aulas em francês até chegar lá. Chegava lá, trabalhava e voltava escutando. Um dia eu estava indo para uma reunião de trabalho em que eu seria promovida e ganharia um salário maior. Eu estava a caminho quando me ligaram dos Médicos Sem Fronteiras: “Olha, a gente está te ligando porque encontramos a sua missão”. Nossa... e qual é a minha missão?

É forte essa história de: “Encontramos a sua missão....”
Debora -
Então, como assim, encontraram a minha missão? “É, porque teve um furacão em Gonaives, no Haiti, e há muitas pessoas feridas. A gente gostaria de saber se você está disponível para partir nesta semana”. Era setembro de 2008. E eu... “Como assim? Eu fiz um teste meses antes e vocês estão me ligando hoje para saber se eu posso partir nesta semana...” Eu com toda a minha vida estruturada, tudo. Aí eu voltei para casa e falei: “Filó, mudança de planos. Vamos mudar de casa!”. E aí, foi.

Mas o que fez você aceitar esse, sei lá, “chamado”? Largar tudo e se jogar?
Debora –
No final daquela conversa com aquele amigo que me falou dos Médicos Sem fronteiras, ele disse: “Sabe, Debora, eu acho que há coisas que a gente precisa pensar... porque provavelmente alguém, em algum lugar do mundo, está esperando por você”. Eu fiquei pensando... É, teoricamente isso não faz nenhum sentido. Alguém, em algum lugar do mundo, está esperando por mim? Ok, né? Mas essa frase ficou, ficou bem forte. E aí, quando a recrutadora me ligou e falou – “Olha, encontramos a sua missão” – eu pensei: o que é um mestrado e um emprego fixo e uma cobertura de frente para o mar e uma gata, o que é? Não é nada...

Como assim “não é nada”? Para a maioria das pessoas é tudo...
Debora –
Dinheiro, estrutura material, nunca foi o meu forte. Não é uma coisa que me toca muito. Acho dinheiro ok, é legal. É bem interessante, você consegue fazer um monte de coisas. Mas sem ele você também consegue fazer um monte de coisas. E acho que, se você se apega a isso, a alguma coisa que é material, isso quer dizer que você está plantando sua raiz por uma estrutura material. Eu quero ter raiz, mas raízes aéreas, que eu possa levar para onde eu quiser.

E aí, você largou tudo e se foi para o Haiti?
Debora
– A gata ficou com a vizinha, uma amiga minha do Sul. Fui lá, deixei a Filomena com todas as bagagens na casa dela. Pedi demissão, acabei o mestrado, tudo para passar um mês. Porque era uma missão de urgência. Entreguei o apartamento, deixei os móveis no meio do corredor porque não tinha condições de distribuir tudo rápido. Só que essa missão se prolongou para quatro meses e meio...

Foi fácil esse desapego pelas suas coisas?
Debora -
O que não é possível carregar comigo é porque não é meu. As pessoas diziam... “Mas você vai deixar tudo? Máquina de lavar no meio do corredor, televisão... e se roubarem?” Se roubarem, roubaram... O que eu vou fazer? Não posso passar minha vida inteira segurando uma televisão na mão... Lembro que eu ia recebendo emails dos vizinhos ao longo dos meses. “Posso ficar com a sua máquina de lavar roupa?” Pode. “O seu quadro está no meio do corredor... posso botar na minha casa?” Pode. E aí, quando eu voltei, foi bem legal, porque fui indo em cada vizinho, tocando na porta... Você tem alguma coisa minha? “Tenho, seu guarda-roupa está aqui...” Foi bem interessante.

Me fala mais desse perfil dos Médicos Sem Fronteiras que é tão você...
Debora –
Eles buscam alguém com muito interesse de prover cuidado para o outro. A gente brinca sempre que na MSF o primeiro objetivo principal é o beneficiário, o segundo objetivo principal é o beneficiário, o terceiro é o beneficiário, o quarto é o beneficiário, o quinto, talvez, o staff nacional, o sexto, o expatriado, que são as pessoas como eu, que saem do seu país para prover o cuidado de alguém. Isso, dentro de uma estrutura de saúde pública, não é muito comum. Eu trabalhava muito no Estado, tipo manhã, tarde e noite. Todo mundo me dizia: “Por que você trabalha tanto? Não tem necessidade...” Como não tem necessidade? Tem muita coisa para organizar. A gente discutia muito em equipe. E as críticas eram: “Super Debora”. Mas isso não era no sentido positivo, mas no sentido negativo. Tipo: “Você está aqui nos matando... dá uma folga! Deixa a gente respirar”. Tanto que, quando eu pedi demissão, todo mundo falou: “Ah, agora ela encontrou o lugar da vida dela! Um lugar que precisa muito, e que tem muita gente com o mesmo perfil, do tipo ‘não sossega’”. Acho que vem muito ligado a isso, de ter esse desejo de prover um cuidado para o outro. Eu lembro que eles diziam: “Mas não é ninguém da sua família...”. Sim... mas qual é o seu conceito de família?

Qual é o seu?
Debora –
Família, para mim, pode ser o cara que está do outro lado da rua. Ok, ele não tem o mesmo sangue, eu nunca vi ele na vida, mas a minha família eu também vejo muito pouco. Então, se o parâmetro é esse, pessoas que você vê com muita frequência, bom, então o meu vizinho é a minha família. Ou a pessoa com quem eu trabalho, ou o gestor que eu estou vendo todo dia na coordenação... Então esse cara é a minha família, se esse é o conceito. Sempre tive um prazer bem grande de viver em família, mas tomando em consideração esse conceito de família bem ampliado. Pode ser qualquer pessoa. Não tenho essa pretensão do mesmo sangue ou do mesmo nome ou de uma história pregressa. E a maioria das pessoas nem conhece a história pregressa da sua família, né? O cara que está lá no Congo, no meio de um conflito armado, também é da minha família. É ser humano? Está valendo.

Como é uma missão?
Debora –
Em missão todo dia é segunda-feira de manhã. Não existe sábado, não existe domingo. Você acorda e é segunda-feira, no outro dia é segunda-feira de novo, e no outro ainda é segunda-feira, e todo mundo tem muito... muito brilho no olho. Sabe? É segunda-feira, mas olha só, tem de fazer isso, isso e isso. A gente briga muito, discute muito, mas todo mundo tem um foco. Ninguém duvida de que o foco principal é o beneficiário, que tem gente que precisa de ajuda, que precisa ser cuidada.

Todo mundo sabe que faz algo que dá sentido à sua vida...
Debora –
É assim.. você está cansada, você está aniquilada, mas a alma está salva, você está se sentindo bem com o que está fazendo. Não tem nenhuma conotação religiosa, a gente até brinca que somos os “ateus sem fronteiras”. A gente acredita no cuidado com o ser humano. Não dá para esperar uma entidade – tomara que ela exista, e tomara que ela um dia comece a se organizar de uma outra forma, porque o mundo é bem cruel. Mas a gente precisa cuidar agora.

Mas nessa primeira missão, especialmente, deve ter dado um frio na barriga, não? Porque as coisas na vida são um pouco duras também...
Debora –
Um pouco, não. São muito duras. Mas embora eu não seja nenhuma Pollyanna, nunca acho que as coisas vão dar errado. Eu sempre tenho certeza que vai dar certo. Mesmo quando der errado, é porque está dando certo. O meu único medo era realmente com a língua. Eu não tinha medo do que ia encontrar lá. Eu não tinha medo de um novo furacão, como é sempre uma possibilidade em um desastre natural. Isso não me inquietava. A minha inquietação era com o francês – como é que vou me comunicar? Por que eu sou psicóloga, né? Eu trabalho com a fala. Então o significado da palavra é muito importante. E o meu receio era: será que eu vou conseguir compreender o significado da palavra do outro? Depois da minha primeira missão compreendi que o significado da palavra, numa catástrofe, é muito pequeno. É muito o que você sente quando está junto com o outro, e o que ele consegue te passar de sofrimento. E quais são as consignas que ele te passa de sofrimento.

E o que são consignas?
Debora –
Consignas são os códigos que ele está te passando de sofrimento. E que, normalmente, não são transmitidos pela fala. Porque são comunidades e sociedades muito pouco trabalhadas no sentido material, tendo como parâmetro uma estrutura social ocidental como a nossa, com educação, escola... São pessoas que normalmente falam muito pouco, mas que corporalmente são muito expressivas. Só que cada comunidade se expressa de uma forma. Para você conseguir compreender os códigos de sofrimento que o outro está te passando, você precisa de tempo. E é muito interessante. Eu estou indo agora para a minha décima missão. E fui ficando muito rápida para perceber as consignas do outro – a forma como cada um se expressa, nem tanto com a palavra, mas a forma corporal também. E é interessante porque o trabalho é muito diferente do que é numa urgência ou do que é num consultório, por exemplo. O trabalho é muito diferente porque você não tem o tempo que você tem no consultório, você não tem a estabilidade que você tem na urgência.

Como assim?
Debora –
Num trabalho de urgência aqui no Brasil, por exemplo, a urgência é do outro, não é a sua urgência. Mas, quando você está numa catástrofe, a urgência também é sua, porque você também está sob o efeito da catástrofe natural. Por exemplo, no terremoto eu estava atendendo as pessoas e o chão estava tremendo. Então eu também estava dentro de uma estrutura de perigo, que é a grande diferença da urgência que a gente vive aqui. Quando eu estava dentro de uma ambulância do SAMU ou quando eu estava dentro de uma Unidade de Pronto Atendimento, eu sabia que a urgência era do outro. Ele estava vindo de um contexto de desastre, mas eu não participava daquele desastre, eu participava de um outro momento, que era uma possibilidade de estruturar e estabilizar psicologicamente uma pessoa. Lá, numa catástrofe, não. Você está junto, você vivencia a catástrofe junto com o outro. É uma forma de dizer para o outro: ok, você não está sozinho, estamos juntos nessa. Isso é bem maluco.

E como você faz?
Debora –
De várias formas. Às vezes, só pelo fato de você estar dentro do mesmo espaço físico que ele, você está mostrando que ok, é perigoso, mas se eu estou aqui e estou te dizendo que funciona, você pode ficar. Como, por exemplo, dentro das unidades que a gente montou no terremoto no Haiti. Depois de 24 horas tudo ainda tremia: as unidades de saúde tremiam, o chão tremia muito, e eu lembro que cada vez que começava um novo tremor de terra as pessoas tinham o ímpeto de sair correndo. Só o fato de você estar ainda dentro da estrutura e de dizer para a pessoa – “Olha, o engenheiro já disse que essa unidade não vai cair se tiver um outro terremoto até 7.0, então a gente pode ficar, e vamos ficar juntos” – já muda. E a outra maneira é investigar coisas bem práticas: que tipo de coisa você pode ir fazendo para se estabilizar. Quase sempre o pedido é o mesmo: “Me ajuda a esquecer”.

E como você responde a um pedido como esse?
Debora –
A minha resposta é sempre a mesma: “Infelizmente eu não posso te ajudar a esquecer. Lembrar, você vai sempre. O que eu posso fazer é te ajudar a lembrar dos eventos com menos sofrimento”.

E como se faz isso?
Debora –
Se faz com um pouco de técnica, um pouco de tempo e muito do desejo do outro de querer elaborar o evento que ele vivenciou. E que não é fácil. Você perde nove pessoas de sua família ao longo do tempo ou você perde tudo – sua casa, seu trabalho, tudo aquilo que você lutou muito para construir e que para a maioria dos seres humanos são coisas muito importantes. Então você chega quando nem elas mesmas gostariam de estar naquele lugar. Essa é a grande especialidade, acho, da organização – chegar quando nem mesmo as pessoas que vivem lá queriam estar naquele lugar. E é nesse momento que você chega. E às vezes você faz um atendimento e fica guardado na cabeça das pessoas para o resto da vida. Você pode mudar completamente o destino de uma pessoa com um simples atendimento.

Me dá um exemplo concreto...
Debora –
Vou dar o exemplo da dona Marie, do Congo. O LRA (Lord’s Resistance Army – Exército de Resistência do Senhor), que é um grupo de rebeldes do governo ugandês que promove vários ataques na fronteira entre o Burundi e o Congo, ataca pessoas como a dona Marie. Essas pessoas atacadas não falam nem a mesma língua, não sabem por que o exército e os rebeldes ugandenses atacam suas comunidades. Lá não existe televisão, não existe internet, não existe rádio, então elas não têm noção de que existe um conflito armado, muito menos que elas estão sendo alvos de um conflito armado. A cidade, Niangara, é considerada o coração da África. Tem inclusive uma pilastra que diz: “Você chegou ao coração da África”.

Deve ter sido muito difícil chegar até lá no meio de um conflito...
Debora –
Muito difícil. A gente desceu em Isiro com um avião pequeno e depois fez oito, nove horas naquelas camionetes tracionadas para chegar a esse lugar. Tudo poderia acontecer no meio do caminho, tudo. Nós éramos a primeira equipe a tentar chegar lá para ver qual era a real situação. A única coisa que a gente sabia é que as comunidades estavam sendo atacadas e que eram ataques muito cruéis. Os rebeldes chegavam nessas comunidades próximas a Niangara, onde as pessoas moram em casas de barro com palha. Os rebeldes jogam fogo nas casas durante a noite e, quando as pessoas estão saindo, eles atiram com aquelas Kalashnikov, que são metralhadoras que não travam. Então eles podem matar muitas pessoas ao mesmo tempo. Alguns morrem queimados, outros morrem de tiros, outros morrem degolados. Outros ainda morrem de hemorragia, porque eles cortam as cartilagens com faca: as orelhas, a ponta do nariz, os lábios. E muitas meninas e mulheres morrem de estupro, de hemorragia após o estupro. Porque os estupros são coletivos. De 30 a 40 homens estupram uma única mulher. Eles fazem os maridos e os filhos segurarem a mulher enquanto os homens estupram em massa. São requintes de crueldade impressionantes.

E foi isso o que aconteceu com Marie?
Debora –
Essa mamãe Marie me tocou muito – eu digo mamãe porque lá todo mundo se chama de mamãe, todo mundo que é mulher se chama mamãe alguma coisa, e homem se chama papai alguma coisa. É um título de respeito. Fazia 24 horas que a gente tinha chegado quando mamãe Marie apareceu. E eu lembro que ela chegou desesperada. Uma mulher muito magra, alta, com a roupa completamente rasgada – porque eles estão sempre com um pedaço de pano amarrado nas pernas para fazer uma saia, um outro amarrado em cima para fazer uma blusa, e normalmente um terceiro para amarrar um bebê. Todos da mesma cor. E ela chegou muito rasgada. E ela disse: “Eu não tenho nenhum motivo para viver, mas me disseram que aqui tinha uma branca que ajudava as pessoas”. Eu falei: “Bom, vamos ver, né? De que ajuda você precisa?”. Ela morava com seis filhos e o marido. Quando um dos filhos estava saindo do le marché(pequenas feiras no meio da rua), alguém gritou: “Corre, porque acabaram de matar teu marido na estrada”. E ela disse: “Como assim, mataram meu marido?”. E disseram: “Os LRA encontraram teu marido na estrada e mataram. Corre do povoado porque eles vão matar todo mundo”. Ela falou: “Mas eu tenho seis filhos dentro de casa...” E aí ela voltou para a sua comunidade, com seu bebezinho amarrado na cintura, e pegou os filhos. E saiu correndo para o meio da floresta, que é mata fechada. Só que no meio do caminho ela percebeu que estava com cinco crianças. Faltava a de dois aninhos. Ela deixou os filhos na floresta e correu de volta para casa com seu bebê amarradinho. E viu a pequenininha dentro de casa, queimando, junto com todas as coisas. Desesperada ela correu para buscar os outros que estavam no meio da floresta e caminhou durante muitos dias dentro da mata fechada com as cinco crianças, sabendo que o marido já tinha morrido, para conseguir ajuda. E aí conseguiu chegar a outro povoado, que era onde morava a mãe dela. E, alguns dias depois, o LRA alcançou essa comunidade e ela sofreu um estupro coletivo. Dezenas de homens a estupraram. E depois mataram dois dos filhos dela. Mamãe Marie seguiu fugindo, mas a cada ataque foi diminuindo o número de filhos dela. Quando ela chegou a Niangara ela tinha apenas um bebê, que era o que estava amarrado na cintura. E ela disse: “Eu não tenho nenhuma razão para viver”.

O que aconteceu com os outros filhos dela?
Debora –
Foram mortos e uma menina sequestrada. É muito comum sequestrarem meninos e meninas. As meninas são escravas sexuais. Durante todo o tempo em que estão sequestradas elas se deslocam na floresta junto com os guerrilheiros. E os meninos são sequestrados para carregar as armas e os roubos em grandes balaios sobre a cabeça. Os guerrilheiros saqueiam as comunidades, queimam as casas, atiram nas pessoas. Isto tudo é uma forma de demonstrar poder diante do governo congolês, que se posicionou contra essa força armada ugandesa. Porque até então os congoleses não tinham sido alvos dos guerrilheiros ugandenses. Mas a partir do momento em que o governo congolês se posicionou contra esse tipo de conflito, eles começaram a atacar as comunidades. Mas não existe informação. Então as pessoas são atacadas sem saber por quê. Logo que eu cheguei, eu não conseguia entender. Como assim? Foi atacada, mas por quê? Mamãe Marie dizia: “Não sei, não sei quem são essas pessoas, eu não sei por que fui atacada, não sei por que eles mataram meu marido, por que mataram meus filhos. Só sei que eu não tenho nenhuma razão para estar viva. Eu não tenho nada. Eu tenho um bebê. E vou cuidar como desse bebê se eu não tenho como trabalhar?”. É uma comunidade que vive de trocas. Não há dinheiro. Então você troca serviços para poder viver. Mas você vai trocar o que quando você não tem nada? Eles vivem de plantar coisas na floresta. Desmatam uma parte da floresta, plantam e aí aquilo ali serve de troca no mercado. Só que quando você não tem mais sua terra, você vai fazer o quê? E eu lembro que no dia em que a encontrei, pensei: como eu posso ajudar uma pessoa dessas? Ela perdeu tudo... E eu era a única psicóloga nesse lugar, a única. Não tinha nem mesmo um psicólogo nacional, ainda não tinha tradutor, eu tinha acabado de chegar à cidade e, se você me perguntar como fiz o atendimento, até hoje eu não me lembro, porque eu não falo a língua dessa mulher. E eu escutei toda essa história...

Em que língua?
Debora –
Ela falava “lingala”.

E como você a escutou em “lingala”?
Debora –
Você começa a se dar conta que a consigna do sofrimento não precisa de muitas palavras. Até porque a pessoa está em estado de choque, então ela tem muita dificuldade de se expressar. Normalmente ela expressa com o corpo, com o olhar, com a forma de levantar o pescoço, a forma de gesticular. E eu me lembro de ter pedido ajuda para escrever a história dela, porque eu precisava descrever para poder organizar algumas coisas mais práticas. Onde ela vai dormir agora? O que ela pode comer? Onde ela pode se vestir? Nesse lugar a postura e a forma de se vestir são muito importantes. Para você ter uma ideia, as pessoas entram no rio antes de irem para o hospital: lavam todas as roupas, colocam na margem do outro lado e ficam nuas dentro do rio esperando secar, porque só têm uma peça de roupa. Quando as roupas secam, elas saem do rio, vestem e só então vão ao hospital. Mesmo depois de um estupro, depois de terem sido baleadas, depois de terem sido mutiladas. Elas têm uma preocupação em chegar limpas e a vestimenta é importante.

E como você fez para ajudar uma mulher que tinha vivido isso?
Debora –
Eu perguntei a ela o que a fazia feliz antes disso tudo acontecer. Se ela lembrava a última vez em que tinha sido feliz. E ela disse: “Hoje eu não lembro, mas eu vou tentar me lembrar”. E eu falei: então, Marie, você pode voltar amanhã? E ela disse que podia.

E ela voltou?
Debora –
Depois disso, eu fui encontrar outras mulheres da comunidade. Contei a história dela. E as mulheres a acolheram dentro de casa. São pessoas que moram em quatro, cinco, num espaço do tamanho do meu banheiro. Não tem divisória, não tem cozinha, é fogo de chão do lado de fora da casa, faz muito calor. E as mulheres encontraram um lugar para ela dentro de casa. Do tipo: “Você é bem recebida dentro da nossa comunidade”. E ela ficou muito surpresa. Ela nunca vira essas pessoas na vida e essas pessoas estavam dispostas a acolhê-la. E no outro dia ela voltou e me agradeceu muito. Ela disse: “Eu me lembrei da última vez em que eu fui feliz”. E quando foi, Marie? Ela falou: “Foi quando eu dancei”.

Nossa...
Debora –
E aquilo ficou... dançou, tá bom. Eu fiquei pensando em como montar um grupo terapêutico, porque a Marie foi só a primeira. Como ela, nessa missão, houve mais de 200 mulheres que eu atendi, sozinha, num espaço de um mês e meio, dois meses. Mulheres e meninas violentadas. Meninas de dois anos de idade, de três anos de idade, de 10, 15, que eram violentadas, estupradas, mutiladas. E eu lembro que o grupo terapêutico nessa comunidade foi de dança. Elas dançavam e com a dança elas contavam a sua história. Era muito bonito. Eu não entendia nada da música, mas eu sabia que a música tinha um conteúdo muito triste. Elas dançavam sempre numa roda e junto com a música cada uma contava a sua história. E choravam e se abraçavam e continuavam contando sua história e dançando. Para mim, cada dia era um ensinamento diferente. Ok, o sofrimento existe, a dor é frequente, a dor é permanente, mas quando a gente está no coletivo isso tudo é dividido. E a dança mostrava isso: a gente não pode parar. E velhinhas de 70, 80 anos, dançavam e saltavam indo até o chão e levantando de novo, porque as danças são muito expressivas. Nessa época, eu já tinha uma tradutora. Ela falou: “Vou te contar uma das músicas”. E era assim: “Quando eu cheguei aqui razão nenhuma eu tinha para viver, agora eu tenho não só uma razão, mas tenho uma família de novo. Tudo eu perdi, mas se Deus quis que assim eu tivesse uma comunidade e uma nova família, então eu fui aceita, e assim eu aceito. E assim agora tenho uma nova vida, uma nova razão para viver”.

É terrível e lindo ao mesmo tempo. Como você sai de uma missão como essa? Como você vive depois de ter vivido isso?
Debora –
Eu saí arrasada. Caramba, não fiz nada por essas pessoas. Tinha muita coisa que precisava ter sido feita. Elas precisam de paz. Não existe saúde, não existe felicidade num lugar onde você não tem paz, o princípio básico da humanidade. Na época eu trabalhava com a seção belga. Então, cheguei à Bélgica muito mal. Fui fazer meu relatório e contei sobre o número de pessoas que estavam sendo violentadas. Disse que a gente precisava fazer alguma coisa. E falei: “Eu estou mal porque não me importo de passar a minha vida inteira atendendo essas pessoas em forte sofrimento, mas eu me importo de saber que amanhã, depois de amanhã, e depois e depois e depois elas vão continuar sofrendo esse mesmo tipo de violência se isso não parar. Agora a primeira necessidade é uma equipe de paz. Como fazer isso?”.

E como fazer?
Debora –
Nós temos jornalistas dentro da organização. Temos um compromisso com a denúncia quando existe qualquer tipo de ferimento aos Direitos Humanos. Me encaminharam para o serviço de comunicação e falaram: “A gente vai fazer alguma coisa”. Eu saí de lá, e os jornalistas foram. E fizeram reportagens e documentários. Divulgaram. Um ano e pouco depois, em 2010, eu voltei para lá. Normalmente depois de um estupro, no Congo, uma mulher não pode mais casar. Não tem mais o direito de casar porque ela não é mais virgem e porque ela já teve a sua primeira experiência. Então ela é alguém que está “suja”. E um dos trabalhos era mostrar para os homens e a comunidade que não, ela não estava suja. E que era preciso rever algumas estruturas da cultura. E, quando voltei, eu perguntei: “Onde está o meu grupo?”. E a resposta foi: “Todas casaram”. E elas vinham à minha sala de consulta mostrar seus bebezinhos, apresentar o marido, os sogros. Vinham com a família inteira. Eu falei: “Gente, não acredito!”.

Reinventaram a vida....
Debora –
Literalmente. Reinventaram uma forma de viver. E elas estavam felizes. E eu fiquei muito feliz.

Essa missão do Congo foi a mais dura para você?
Debora –
Sim, no sentido de que nós éramos a única organização que estava lá. O medo era perene a noite inteira. Eu tinha muito receio, porque eu via as mulheres, a forma como eram cometidos os estupros. E eu era a única mulher nessa missão. Eram 14 homens e eu. Então eu sabia que, se os rebeldes ugandenses entrassem na nossa casa, o desastre e a violência que eu atendi o dia inteiro aconteceriam comigo. Então a dor era constante. Foi um mês e meio, quase dois meses, de dor 24 horas. De dia, o dia inteiro, enquanto existia luz, a dor era compartilhada, minha com elas. E durante a noite, o medo – aí o medo era só meu. Quase a noite inteira sem dormir, pensando. Cada folha que mexia do lado de fora do quarto, eu pensava: podem ser eles. Porque a gente não sabia até onde os ataques poderiam chegar. Um dos ataques chegou a sete quilômetros de onde a gente estava. Muito perto mesmo. Barulho de tiros, as pessoas gritando, fogo, então a gente sabia que, se chegasse à comunidade, nós também seríamos alvo.

E como era esse medo?
Debora –
Bom, luz a gente já não tinha. A gente usa sempre lanternas na cabeça para se locomover, para ir à latrina, para qualquer coisa. E o meu medo era de tudo. Medo de dormir profundamente, porque sabia que, se eu dormisse um sono mais profundo, perderia a possibilidade de me proteger, se houvesse necessidade de fugir. Ao mesmo tempo, o medo de...ok, mas vou fugir para que lado? Tinha medo de sofrer uma violência sexual, que é uma coisa que me toca muito. Desde que me formei eu trabalho com violência sexual. Aqui, inclusive, em Sergipe. Foi um dos motivos de eles terem me chamado para a organização – por ter uma expertise de trabalho com mulheres violentadas. E é uma coisa que sempre me tocou muito porque, quando você escuta o sofrimento de alguém que vivenciou uma violência sexual, é como se você compartilhasse a história dessa pessoa, e você acaba vivenciando um pouco da história dela. E as histórias são muito doídas. Alguém que entra dentro de você é alguém que te invade, te dilacera. Como elas mesmas dizem: “O meu braço, você pode quebrar, ele vai se reconstituir. Mas por você ter entrado dentro de mim, eu nunca vou poder te tirar”. E essa é uma dor muito forte. Então, o meu receio também era de estupro. Inclusive, pelos estupros serem coletivos, as mulheres têm fístulas depois. O canal da vagina e do ânus viram um canal só. Então você não consegue mais conter nem sua própria urina nem suas fezes. Você está andando na rua e sente que sua urina está saindo. É muito triste. E há ainda a vergonha de ir a um espaço público, por exemplo. Elas vão ao hospital e não querem sentar na cadeira. Você diz para elas: pode sentar! “Mas eu não quero...” Até eu me dar conta de que elas não se sentavam porque tinham medo de fazer xixi ou de fazer cocô em cima da cadeira, porque elas não conseguem sentir quando vai sair... Uma delas me contou que ficam de um a dois dias sem comer nem beber nada antes de ir a uma consulta, para não fazer xixi nem cocô dentro do hospital, ou dentro da estrutura de saúde. Você imagina o sofrimento de alguém que, a cada vez que tem de ir a um espaço coletivo não pode comer nem beber um ou dois dias antes? É muito sofrimento. Mas é interessante, porque também tem beleza nesse lugar, e também tem riso, também tem desejo de vida. É um negócio impressionante. A missão tem de ser feita com todos os sentidos: o que você escuta, o que você vê, o que você toca, o que você sente, o que você cheira...

Como é o cheiro?
Debora –
Cheiro é uma coisa difícil de contar para as pessoas. O cheiro da morte é um negócio difícil de descrever. Como você descreve o cheiro da morte? Cheiro de ser humano. No Brasil, a gente tem muito pouco cheiro de ser humano. Porque ser humano não cheira bem, o ser humano cheira mal. Tipo: fique sem colocar seu desodorante, sem passar xampu no cabelo, sem passar um bom sabonete no corpo, sem passar um creme, um protetor solar. E sinta seu cheiro daqui a uma semana. É um cheiro forte de gente. E eu vivo sentindo cheiro de gente, em todos os lugares. Normalmente, nos lugares aonde eu vou não existe xampu, não existe sabonete, não existe desodorante. Cheiro de ser humano é um negócio impressionante. E o cheiro do medo do ser humano é uma coisa forte, também. E o cheiro da morte, mais ainda. No Haiti, depois do terremoto, havia muitas pessoas amputadas. E o cheiro daquele sangue, dois, três dias depois... O cheiro daquelas pessoas em decomposição, ainda vivas, é um cheiro muito forte. Muito, muito forte, que não dá para descrever. Posso descrever para as pessoas o rosto, a postura de dor, de sofrimento, mas o cheiro eu não consigo descrever. É uma das coisas mais fortes que eu senti naquela missão. O cheiro da morte. Primeiro, você começa a perder a capacidade de sentir seu próprio cheiro, imagina o cheiro dos outros. E, depois de um tempo, você começa a perceber que tudo cheira, inclusive o medo, a morte, a dor, a felicidade – tudo tem seu próprio cheiro. E às vezes é bem doído.

E como você se vira em cada volta de missão? Porque eu faço algumas reportagens complicadas, nem perto da sua experiência, mas mesmo assim acho complicado voltar e sofro bastante. Como você faz?
Debora –
Eu preciso voltar para um lugar onde esteja sozinha. E por isso Aracaju é uma ótima escolha, porque é calma e tranquila. Normalmente eu tenho alguns registros das viagens. Registro escrito, ou foto, ou alguma gravação. Eu revisito tudo isso, revejo as fotos, olho algumas filmagens, imagens que eu gravo, coisas que escrevi. Reviso tudo de novo. Não remexo, não reedito as coisas, o que está escrito está escrito. Naquele momento era tudo o que eu podia fazer para elaborar minha vivência naquele lugar. E eu preciso revisitar várias vezes. E eu preciso de água. É a razão de eu estar morando aqui em Aracaju até hoje. Preciso de mar, preciso caminhar, andar de roller na praia, tomar minha água de coco. Uma parte do meu projeto terapêutico é dormir até quando eu tiver vontade de dormir, comer quando tiver vontade, beber quando eu tiver vontade...

Você deve ficar totalmente esgotada...
Debora –
Na missão, você não sente que está cansada. Você está com a sua química corporal tão alterada, é tanta adrenalina, é tanta excitação, que você não percebe. E eu só percebo quando entro no avião e me dá um sono incontrolável. Não escuto nada. Eu lembro até de uma vez em que eu perguntei: “Moço, já decolou?”. E ele começou a rir: “Faz mais de 15 horas, e nós já estamos chegando ao Brasil”.

Você faz terapia?
Debora –
Quando eu volto faço terapia todos os dias ou três a quatro vezes por semana. Brinco com minha terapeuta: “Eu trouxe um monte de coisas para digerir junto contigo”. Preciso desse tempo para digerir. Mas tenho feito missões muito rápidas, uma seguida da outra. Tipo: voltei da Líbia no dia 30 de março e agora estou indo para o Quirguistão. Só duas semanas entre uma e outra.

Dá tempo de digerir tudo o que você viveu em duas semanas?
Debora –
A primeira semana é para digerir. A segunda, para me preparar. Tipo agora, né? Tem computador em todas as salas aqui de casa, porque eu estudo em um, cansei, vou estudar em outro. Estudo um pouco da cultura, um pouco da língua, alguns hábitos, e faço um pouco de preparação psicológica para o que vou vivenciar, para tentar avaliar até onde eu posso ir nesse lugar.

É fácil para você partir desses lugares?
Debora –
É como eu te disse. Eu não costumo focar muito no que fica, mas no que eu estou indo buscar. Como no sofrimento: você tem sempre uma alternativa. Não é o evento, em si, que te causa a dor. É o significado que você dá a ele. Às vezes me incomoda partir sem ver algumas respostas. Mas sei que o mundo não para quando eu vou embora. O mundo continua. E aquilo que você faz quando você está lá tem reverberações dentro das pessoas e dentro dos espaços. Então, é uma dor do tipo: estou indo embora, não vi o resultado disso, mas alguém vai ver. E tomara que aconteça. Mas não chega a ser uma sensação ruim. Tem uma sensação boa: estou voltando para casa, vou dormir, vou tomar banho de verdade, vou comer... Tem uma sensação boa, como quando eu saio daqui. Dominic, o recrutador do Rio, me liga, dizendo: “Debora, temos uma missão para você”. Mas, para mim, parece que ele diz: “Debora, você acaba de acertar o bilhete premiado da Loteria Federal, e você ganhou sozinha!”. É a minha décima missão, mas cada vez que ele me liga é uma felicidade, uma sensação bem maluca. Ele está me dizendo que aconteceu um furacão, um terremoto, e eu estou muito feliz porque sou eu que fui chamada para ir nessa missão. Podia ser qualquer outra pessoa, mas escolheram a mim. E me dá uma sensação boa, sabe? Sou eu que estou indo vivenciar isso, dividir isso com aquelas pessoas, naquele momento, naquele lugar. É uma sensação maluca, tipo: o salário não é bom, as condições de vida não são boas, a segurança e a estabilidade são zero, e ainda assim eu sou a pessoa mais feliz do mundo cada vez que ele me liga dizendo que estou indo. Você lembra daquele programa em que a pessoa ficava com os ouvidos cobertos dentro de uma cabine? Aí o apresentador ficava fazendo propostas....(ela imita a voz) “Você troca sua casa na praia, uma cobertura, por uma caixa de fósforos?” E a pessoa: “Sim!!!” De olhos fechados, sem ouvir nada, a pessoa super feliz... sou eu. Você troca a sua vida de ir para a praia, tomar água de coco, caminhar na orla, ficar no seu apartamento, tomar um banho gostoso para tomar banho de caneca no meio do mato, dentro de um conflito armado, com risco de vida? Siiiiiim!!! (risos) O ser humano não é congruente nem lógico... então, ok.

Quando você olha para trás, lá na sua infância, você consegue enxergar a arquitetura que levaria você a esse caminho?
Debora –
Eu sou filha de pessoas bem libertadoras, que nunca me podaram. Quando eu fiz 15 anos, escrevi uma carta para meu pai e minha mãe agradecendo por terem me dado asas para eu saber que podia voar para qualquer lugar e também raízes para saber que podia voltar sempre que precisasse. Meus pais sempre foram muito caseiros. Meu pai era relojoeiro e minha mãe, advogada. Nunca foram de viajar muito. Foi depois que eu comecei essa minha vida bem nômade, bem “caminhadeira” no mundo, que a minha mãe resolveu sair, virar nômade. Mas acho que a razão é que, além de eles terem sido muito libertadores, eles sempre foram muito confiantes na nossa escolha. Desde pequena eu escuto: “Na tua cabeça tem um guia. Se você acredita que dá para fazer, vai e faz”. Minha mãe sempre dizia e diz até hoje. “Mas o que você acha, minha filha, você acha que isso vai dar certo?”. E eu sempre acho que vai dar certo. “Então faz”, ela diz. “Você tem mais coisas dentro de você do que consegue me dizer. Então, se acha que dá para fazer, faz”. Desde pequena era assim.

Você e sua família são muito próximas até hoje?
Debora –
Sim, mas somos muito autônomas. Meu pai faleceu em 2003. Minha mãe e minhas duas irmãs têm cada uma a sua vida, em cidades diferentes. Uma irmã é advogada e a outra, fisioterapeuta. Não fazemos o tipo meloso. Nós sabemos que para ter carinho e cuidado não é preciso estar fisicamente presente o tempo todo. Você pode cuidar e acariciar alguém, mesmo a distância. Nos encontramos sempre no Natal, em Santa Maria. Talvez seja isso que me dê facilidade para ir, mas para voltar também. Eu não tenho dificuldade para ir, mas também não tenho para voltar. Não me causa dor voltar para casa. Me causa felicidade: vou ficar em casa, vou dormir...

E você sabe que não está fugindo de nada...
Debora -
Até porque eu me levo para todo lugar, né? Eu não tenho como fugir. Eu estou junto comigo o tempo todo.

E quais são seus sonhos?
Debora –
Ser feliz. E é bem amplo isso, mas ao mesmo tempo é bem restrito. Não são grandes planos nem desejos. Eu vou fazendo coisas que me dão a sensação de estar viva, de estar feliz. Faço coisas que me dão a sensação de que ainda brilha o meu olho. Acho que quando eu olho para alguma coisa que eu sinto... hum, isso não faz meu olho brilhar... eu não fico. Posso estar ganhando o melhor salário do mundo, posso estar num lugar extremamente estável e confortável. Não é isso que me dá o grande prazer. É a sensação de estar viva. Acho que tem muita gente no mundo que não está viva. Está andando por aí, mas viva não está.

Como é estar viva?
Debora –
Eu preciso dessa sensação boa, sabe, de encontrar os humanos por aí. Mesmo com tanta falta de humanidade nesses espaços para onde vou. Mas humano é isso tudo: essa crueldade, mas também essa riqueza; essa maldade, mas também esse acolhimento do outro. Quando você não tem nada, mas você ainda tem espaço para acolher alguém dentro de você, é interessante, bem interessante. E aí você se dá conta de que o material não é nada. Nada. Tipo... um terremoto pode terminar com tudo isso daqui. E aí quando as pessoas dizem (ela imita a voz): “Mas como, você acabou de comprar seu apartamento e já vai abandonar?”. Eu comprei um apartamento, não comprei uma algema para botar no meu pé. Um apartamento é um lugar para onde você pode voltar quando quiser, ele não vai fugir. Um dia ele pode desaparecer num terremoto, num maremoto, qualquer coisa pode destruir ele. E se esta for a razão para eu viver, talvez eu nunca consiga me recuperar da tragédia dessa perda. Mas acho que, quando o ser humano quer uma razão para viver, ele encontra. Seja uma pedra... talvez uma pedra dê razão para você viver. Você diz: essa pedra aqui é mágica, você vai encontrar a sua sorte com ela. Pegue nessa pedra e atravesse esse rio. Ok. Talvez essa pedra seja uma razão para viver.

O que você vive transforma você o tempo inteiro, claro. Mas há alguma transformação mais concreta que você possa contar?
Debora –
Não sei... talvez tenha sido um encontro. Acho que agora é mais claro para mim. Eu acredito que você tem muitas coisas dentro de você, sempre. Todo mundo tem muita coisa dentro de si. Você só faz aquilo que cola. É como se fossem vários ímãs. O seu pólo só cola em coisas que você já tem. Se não, não colariam em você. Talvez com essas vivências tenham ficado mais evidentes em mim algumas coisas. Especialmente essa relação com o material. Nunca foi muito o meu forte dinheiro e coisas palpáveis. Mas agora faz menos sentido ainda. Bem menos. Eu lembro quando no Congo eu recebi as diárias, o dinheiro para sobreviver naquele lugar. E eu lembro que eu estava morrendo de fome, e era de tarde já, e não tinha nada para comer na casa. Lembro que eu perguntei: “Não tem nada aí para comer? Estou com muita fome”. E a moça disse: “Teve um ataque ontem, lá no mercado, e não sobrou nada. Não tem nada”. E você se dá conta do valor do dinheiro – um pedaço de papel que é significado puro. E, naquele dia, por exemplo, ele não significava nada. Eu não podia comprar nada com o meu dinheiro. Estava lá, com o dinheiro dentro do bolso e não tinha um grão de arroz para comprar porque não havia paz naquele lugar. E aí você começa a se dar conta de qual é o valor das coisas materiais. Você não come o seu dinheiro. Você não come o seu salário. Há outras coisas ali que têm uma importância e um significado muito maior e que não são coisas físicas. As coisas materiais te dão uma sensação de paz, mas é apenas uma sensação de paz, não é a paz. Não é a saúde, não é a riqueza. É uma sensação de tudo isso. Que pode ser destruída muito rapidamente. Talvez isso tenha ficado mais evidente para mim. Já tinha um significado, mas não tinha essa força que tem hoje.

O que mais você percebeu depois de viver no limite do humano?
Debora –
Tem me caído muitas fichas sobre beleza e estética. Em cada lugar que eu vou, a sensação de percepção da estética e da beleza é muito diferente. E me encanta, me encanta mesmo.

Fiquei curiosa para visualizar mamãe Marie. Como ela é?
Debora –
É uma mulher bem alta, magra, muito magra. Uma mulher que chama a atenção pelas cicatrizes no rosto. Ela é de uma tribo onde as mulheres fazem cortes muito bonitos no rosto quando ainda são jovens. A estética desse lugar é uma estética muito interessante. Nada a ver com a estética que a gente valoriza no mundo ocidental, mas uma estética muito forte, onde as marcas do rosto dizem de onde você vem e qual é a sua história. Como tatuagens. São cicatrizes que vão contando a história dessa mulher. Nesse lugar, as mulheres ou raspam o cabelo ou têm o cabelo muito comprido. Não existe o meio termo. Ou elas têm tranças enormes, que é um grande símbolo de beleza. Ou são mais velhas e têm o cabelo raspado, o que também é um símbolo de beleza.

E nos outros lugares onde você foi, como era vivida a questão da beleza? O que era o belo?
Debora –
Em Masisi (Congo), as pessoas têm os dentes bem separados. E elas serram para ficar mais separados. Isso, esteticamente, é muito bonito. Eu sempre pergunto: “O que é um homem muito bonito aqui? Uma mulher muito bonita?”. Eu sou muito perguntadeira. E eu me lembro de um dos psicólogos nativos me contando: “Ah, uma mulher bem bonita aqui é a minha mulher. A minha mulher é a coisa mais linda do mundo”. O nome dele era Dodô. “Ah, Dodô, e como é a sua mulher?” E ele a descreveu: “Minha mulher é bem alta, é bem gorda, ela tem os dentes bem separados, e ela tem umas tranças...” Na minha cabeça ocidental, eu fiz a imagem de uma mulher com seios grandes, bem magra, acinturada, com bunda, perna firme. E eu fui fazer uma seleção, e a mulher dele também era psicóloga e concorreu. Quando eu a vi, levei um susto. Então essa é a mulher linda dele! Era uma mulher muuuuuito grande, muuuito gorda, com os dentes muuuito separados. Uma mulher bem masculina, bem forte. Bem, mas bem gordona. Do tamanho desse sofá (de dois lugares). E eu pensei: “Essa então é a beleza”. E depois eu fui perguntando para outras pessoas no caminho o que era uma mulher bonita, quem era uma mulher para casar... Porque eles sempre diziam: “Essa é para casar, essa não é para casar”. Aí eles respondiam: “Como assim, você não sabe o que é uma mulher para casar?”. Porque quando você está dentro da sua cultura, você acha que todo mundo compartilha, né? Uma mulher para casar, naquele lugar, é uma mulher grande, forte, que consegue suportar o peso de dois bebês sobre o próprio corpo, que consegue capinar e preparar a horta e que ainda tem forças para, quando chegar em casa, arrumar as coisas. Só que eles estão falando isso não com uma conotação machista, mas com uma conotação de: “Como você não sabe? É assim”.

Você, pequena e magra, estava completamente fora do padrão de beleza local...
Debora –
Eu sempre estou completamente por fora dessa beleza. Eu sou o lado B da beleza desse lugar... (ri). Lembro que uma vez um homem de lá até falou: “Você é tão bonita, pena que seja muito magra. E os dentes, também, são muito juntinhos...” (ri muito) Eu fico pensando que uma pessoa que não se sente bem com sua aparência só precisa rodar o mundo. Você sempre vai encontrar alguém que procura exatamente você.... e nada mais do que você mesmo. Tem gosto, cultura e estrutura para tudo nesse mundo.

E a vivência da sexualidade também deve ser muito diferente, não?
Debora –
Eu lembro que uma das aulas é sobre sexualidade. Como se desenvolve a sua sexualidade? Como casar depois de ter sido estuprada? Como ter uma relação sexual com alguém depois de ter sido violentada? E eu lembro de uma pergunta que me marcou muito, de uma mulher de uns 45, 50 anos: “Mamãe Debora, como é fazer amor com alguém com carinho?”. Você imagina alguém que é casado há muito tempo e que não sabe o que é fazer amor com alguém, ter cuidado e ser cuidada?

E o que você respondeu?
Debora –
Eu expliquei um pouco como era no mundo ocidental, que nem todos os homens são carinhosos, nem todas as mulheres são carinhosas, mas que existem, sim, estruturas de carinho, que o carinho também é uma estratégia cultural. Mas que nem todas as culturas desenvolvem esse tipo de estratégia. Essa mulher então me disse: “Se eu mostrar para ele que estou sentindo prazer, vou ser considerada uma prostituta. Será que você pode falar com meu marido para dizer a ele que isso não é coisa de prostituta?”. Posso. Pode tudo num lugar desses. Todos os tipos de intervenção são possíveis. Existem, sim, várias consignas, mas não existe um padrão que tem de ser seguido. Cada pessoa é um mundo de necessidades e um outro mundo de possibilidades. E você tem de saber que tipo de necessidades tem esse mundo e como fazer essa ponte com o mundo das estratégias de cada um.

E você falou com o marido dela?
Debora –
Falei. Foi interessantíssimo, porque os homens não falam nesse lugar, né? Cabeça baixa... ainda mais com uma mulher. Imagina um homem negro, afro, subsaariano, falando para uma mulher sobre sua vida sexual. Não sei se por sorte ou azar, nesse lugar as mulheres brancas são consideradas assexuadas. Não somos nem homens, nem mulheres. Acho que isso facilitou bastante. E eu lembro que ele disse assim: “No mundo dos brancos funciona assim?”. Eu falei: “Não no mundo de todos os brancos, mas a gente não precisa dizer que tem um mundo de branco e um mundo de negro, mas que isso pode se constituir das duas formas. Inclusive, no mundo de onde eu venho existem homens brancos e homens negros. Eu não vivo num mundo só de brancos. Vivo num mundo onde existem, sim, muitas pessoas negras, e que algumas sentem prazer, outras não sentem. Mas que isso, sim, é possível. Você não precisa ser profissional do sexo para você sentir”. E eu me lembro das perguntas dela: “Mas eu faço como?”. Porque nesse lugar é muito diferente. Os prazeres são diferentes. A forma de sentir prazer é diferente.

E como é?
Debora
– Aqui você vai à farmácia para comprar um lubrificante para uma relação sexual. Lá é diferente. Você compra pílulas ou você usa ervas para estar ressecada na relação sexual. Então, normalmente, um presente de casamento é ou uma pílula, para você se ressecar, ou ervas para você secar sua vagina antes da relação sexual. Para que sua vagina esteja bem seca na hora de ter uma relação. Então você imagina a dor de um estupro, né? Porque a mulher obviamente já está ressecada.

E o prazer é por estar seca?
Debora –
Não da mulher, o prazer do homem. Quando eu pergunto para elas se sentem prazer, elas dizem: “Não, sinto dor”. É uma das razões de o número de casos de DSTs (doenças sexualmente transmissíveis) ser muito alto. Elas já têm muito mais fissuras, muito mais contato de sangue, muito mais contato de secreção. Você precisa então dar algumas dicas sem interferir diretamente em uma cultura, porque esse não é o meu trabalho, nem o trabalho de ninguém, o de desconstruir uma estrutura que está dada. Mas quando uma pessoa diz: “Essa estrutura não me dá prazer, essa estrutura me machuca, essa estrutura me fere, me causa sofrimento, bom, aí minha intervenção é possível”. E funcionou. Para essa pessoa, pelo menos, funcionou. Para esse casal.

Como você sabe que funcionou?
Debora -
Ela me disse. Bateu na janela do meu quarto e sussurrou: “Funcionou!”. (risos)

Como é para você esse contato com o mal humano? Esses homens que queimam, mutilam, estupram e matam sem sequer conhecer. Nem mesmo é pessoal. Como você lida com isso?
Debora –
Eu sempre acho que tudo tem uma razão, um significado. Por mais que a gente não entenda. Eu imagino que mesmo essas pessoas têm dentro da cabeça delas uma razão. Estou entrando no meu terceiro ano de MSF e ainda não consegui entender essa estrutura de maldade. Se me falarem: “Você precisa fazer um atendimento de uma pessoa do LRA”. Eu vou fazer. E vou tentar entender com ele o que está acontecendo e como se estrutura isso. Eu até brinquei uma vez com meu chefe. Eu falei: “Me deixa fazer o atendimento deles. Eu preciso entender o que está acontecendo”. Não consigo entender como alguém consegue fazer isso com uma menina de 11, 12, 13 anos. Ainda para mim é incompreensível. Mas eu gostaria de entender. Eu sempre acho que tem, sim, uma razão, que tem uma história atrás disso, e que talvez isso explique. Que não justifica, não justifica. Você pode me contar 100 mil histórias. Eu acho que isso explica, sim, mas não justifica. Mas... ok. O meu trabalho é este: atender as pessoas que ali chegam. Não importa de que lado que elas vêm, não importa que tipo de acontecimento se passa na vida delas ou se passou. O meu trabalho é aliviar o sofrimento humano, seja ele de onde venha, seja ele a cor que tenha. E dá para fazer isso. É a razão de eu continuar. Porque se eu achasse que não dava para diminuir o sofrimento, que não dava para ajudar as pessoas a escolherem novas estratégias de felicidade para a vida, talvez eu não estaria nesse lugar. De todos essas nove missões, eu não me lembro de alguém dizer: “Eu não encontrei uma razão para viver”. Muitas pessoas, principalmente no Haiti, diziam: “Eu não quero mais viver”. Na África, já é mais difícil você encontrar essa fala. Eles dizem: “Eu não tenho nenhuma razão para viver”. Mas estão lá, com aquele olhar do tipo: “Mas me ajuda a encontrar?”. Me ajuda a fazer a metamorfose desse sofrimento em vida mesmo, em felicidade? E às vezes a felicidade pode ser um grupo de dança, pode ser uma caminhada coletiva em algum lugar, pode ser um abraço... Como uma mulher de 70 anos me disse uma vez: “Nunca ninguém me abraçou”. Ela tinha sido estuprada e seu corpo era todo arqueado, enrijecido. Em cada lugar o estupro tem um significado diferente e, para aquela etnia, violentar uma mulher mais velha conferia poder ao estuprador. Então eu a abracei. O afeto pode, sim, fazer uma grande diferença. Eu não vou mudar o mundo, com toda certeza, mas eu posso mudar o mundo de uma pessoa durante algum tempo que pode ser uma hora, duas horas, 24 horas. Tá bom, sabe? Se todo mundo tiver uma hora, ao menos, de intensa felicidade, um sentimento bom de acolhimento, tá bom. É suficiente. Se em 70 anos ela nunca recebeu um abraço, por que eu não posso fazer uma grande diferença com um abraço, com um toque?

E como você lida, Debora, com a indiferença? Explico: você volta para o Brasil e muita gente não está nem aí, não é? A maioria das pessoas, de fato, não está nem aí para o sofrimento do outro. Se interessa apenas em cuidar da própria vida ou no máximo daqueles que considera sua família de sangue.
Debora
– Isso é bem difícil. Quando eu volto, as perguntas são sempre as mesmas. Mas as reações também são muito parecidas. As perguntas vêm do encantamento de alguém que escuta uma história de filme. O interesse termina quando termina a mesa de bar, ou quando termina a conversa na rua ou na praia. Isso me assusta um pouco, sabe? Até onde você se sente tocado para mudar uma história? Não estou dizendo que todo mundo precise fazer esse trabalho, nem que todo mundo precise ser muito militante, não é isso. Mas é uma sensação de que as pessoas se conformam com tão pouco, sabe? Muitas choram, até. Mas quando eu termino de contar é como se desligassem a TV. Ou saíssem da sala de cinema. A tristeza dura a emoção daquela cena. E é uma pena que eu não consiga fazer com que as pessoas sintam a dor daquelas pessoas naquele momento.

Parece que não há conexão, não é?
Debora –
Uma inquietação, pelo menos... Não quero que o mundo inteiro seja triste, não quero que o mundo inteiro fique mal, não é isso. Mas como tocar o lado A do mundo? Como tocar essas pessoas que estão dentro desse contexto estável, dentro de suas vidas tranquilas, de seu carro novo? Ok, como fazer com que essas pessoas pensem em uma forma de fazer do mundo um lugar um pouco diferente? Não quero que todas estejam na África ou que todas vão para o Haiti, mas acho que cada um pode fazer uma coisa muito pequena para poder mudar isso, sabe? Coisas bem pequenas, mesmo, que você pode ir mudando. Tipo: eu estou te contando que tem trabalho escravo nesse lugar. Ok, você pode não comprar um produto desse lugar. Ou estou te falando que nesse lugar existe determinado tipo de violência. O que você pode fazer com isso? Eu acho que você sempre consegue fazer alguma coisa. Dentro do nosso país, mesmo, tem muita coisa para ser feita e acho que a gente não faz porque essa tranqüilidade – ou essa acomodação com roupagem de tranquilidade – dá uma sensação de conforto para as pessoas.

E como você lida com isso?
Debora
– Isso ainda me inquieta. Essa roupa não é o meu número, sabe? Me dá um desconforto. Mas enquanto eu não sei o que fazer com isso, eu vou trabalhando com esse outro lado. Não dá pra fazer tudo ao mesmo tempo. Isso é o que eu consigo fazer nesse momento: contar essas histórias quando eu volto e apenas quando me perguntam, porque se não me perguntarem eu não digo nada. Não tenho essa vontade de dizer para todo mundo: “Sabe o que eu estou fazendo?”. Não tenho. Mas, se vierem me perguntar, estou sempre disposta a falar. Mesmo que às vezes seja repetitivo.

E isso não te dá uma solidão muito grande na volta?
Debora –
Acho que nas primeiras duas, três missões, eu me sentia um pouco solitária. Eu queria contar mais detalhes. Mas as pessoas querem ouvir até certo ponto. No ponto em que começa a tocar muito o sentimento, o sofrimento, a angústia, e que elas não conseguem traduzir isso em uma ação ou um significado mais concreto, elas começam a ficar desconfortáveis nessa escuta. Então nessas primeiras duas, três missões, era um pouco... como assim? As pessoas não querem ouvir mais? Mas hoje eu já compreendo. Ok, elas não escolheram esse mundo para elas, eu não tenho o direito de forçá-las a um mundo que não querem. Cada um tem a sua escolha. Inclusive, a escolha de dizer: “Eu quero viver nesse outro mundo”. E a alienação também traz felicidade. Você não saber de tudo, você não saber de uma série de penúrias e de desgraças do mundo também te traz um conforto e uma sensação de felicidade de.... Ok, tudo o que eu sei é que meu filho está bem alimentado, dormindo num bercinho bonito, que acabei de reformar o quarto dele com um arquiteto. Está tudo ótimo. Tipo, a alienação também é isso, também traz conforto. Mas eu não escolhi esse lado. Eu escolhi saber, eu escolhi ver.

Como é escolher ver?
Debora –
Rico, bem rico. É uma sensação de ter muita gente dentro de mim. Eu já sou muitas, né? Sou muitas mulheres e muitos homens também, sou muita gente. É uma sensação de... (permanece um pouco em silêncio) estar muito plena. Plena de história, de tudo. Plena...

Aqui a postagem original da entrevista, com fotos da Debora Noal.